quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O QUE É HUMANISMO?

As variadas ciências com seus objetos específicos nutrem uma preocupação com o ser humano. Este debruçar-se sobre o ser humano na sua realidade palpável e contingencial, é aqui chamado de humanismo. Existem equívocos que deturpam esta perspectiva. O humanismo não é convencionalismo, não se expressa nas conveniências, nos conchaves que absolvem o rico presenteado com robustas reduções de pena e condena o pobre que sequer é ouvido e julgado. O humanismo é instrumento de resgate que visa preencher as graves lacunas produzidas por quaisquer ciências que estabelecem parcerias nocivas.
Uma política que aceita a parceria do humanismo não se reduzirá a simples manutenção do poder, não será a clara expressão do custe o que custar, lembrará que a tarefa social consiste em incluir todos aqueles que estão sob os seus cuidados, mostrará que os meios de inclusão são legítimos, possuem fundamento constitucional e não ameaçam ganhos de uma pequena classe que sempre se banqueteou diante do suor desmedido de muitos que tiveram seus direitos negados e sentiram-se até devedores dos seus exploradores. Uma política humanista transformará a democracia na antessala do direito e da justiça.
Uma religião que abriga uma perspectiva humanista não estará ao lado de uma política homicida que recorre ao hospital Albert Einstein e deixa ao léu milhares de brasileiros. Uma religião que se torna um espaço eleitoreiro, que manipula ao invés de libertar as consciências, que gera dependência e não autonomia, não pode apresentar-se como uma religião em prol da vida. Esta não é uma religião da denúncia da opressão, mas é aquela que camufla a corrupção. Uma religião que transforma a doutrina num monopólio da experiência transcendental degenera numa sagrada ferramenta que abençoa a exclusão.
Um direito humanista não aceitará ser mais um brinquedo que satisfaz os detentores do poder. Não cederá diante daquele que pode pagar mais e não esquecerá o que menos tem. Um direito humanista aceitará dialogar com todas as esferas de uma sociedade. Isto não é ingerência. É participação. Um direito humanista não é absolutista. O humanismo evitará que o direito se envaideça, se torne decrépito e acabe assim, cego, mudo e surdo. Um direito humanista não compactuará com semideuses que recebem os tributos dos pobres mortais. O direito humanista caminhará sempre ao lado da verdade e da justiça.
Uma economia humanista jamais verá o indivíduo como simples espécie de mercadoria. Esta economia indagará o que torna o empregador sempre mais rico e o que distancia o empregado do produto que fabrica. A economia precisa ir além de um mero acúmulo nas mãos de poucos. Se a economia não gera distribuição de renda e serviços públicos de qualidade, continuará blindando as desigualdades abissais de uma dada sociedade. O humanismo não é assistencialismo, pelo contrário, trata-se de uma práxis libertadora e emancipadora que visa reunir esforços em prol da construção de uma efetiva cidadania.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

O DIREITO E O MEIO AMBIENTE

A teia de relações chamada sociedade é alimentada por esta propriedade humana inesgotável que é a ação. As propostas éticas, estoicas, hedonistas, teleológicas, deontológicas e tantas outras, oferecem parâmetros para uma leitura interindividual da ação, evidencia o fundamento teórico sobre o qual a mesma está pautada. O direito, enquanto linguagem ética coercitiva realiza uma leitura enfatizando os diques que são necessários para conter disparates e descontroles que ameacem a harmonia das relações erguidas na sociedade. Ler o crime de forma analítica implica perceber que este traz consigo um fato típico que remete a uma ação. Por sua vez, a ação que está sob a ótica do direito não deriva só da pessoa física, mas ainda daquela jurídica.
As pequenas e as grandes empresas nas variedades das fabricações constituem a chamada pessoa jurídica. É impossível pensar a sociedade atual sem os serviços prestados por empresas nacionais e multinacionais. A fabricação de energia elétrica, a exploração de petróleo e a composição dos demais combustíveis, de um modo ou de outro, fazem parte do cotidiano de todo cidadão que se beneficia com toda esta superprodução. É impensável colocar estas atividades sobre os ombros deste velho conhecido chamado Estado. Por isto, este age qual agente regulador, como alguém que vigia para que tais iniciativas não firam o bem comum. É desejável uma boa relação entre setor público e privado, capaz de respeitar direitos fundamentais consolidados.
No convívio social, o direito é algo que deve ser assegurado indistintamente e ainda com a maior seriedade. O direito não deriva da bondade do monarca que sob o bom ou mau humor, concede ou retira benefícios. O direito perpassa toda extensão da experiência humana e acentua o respeito aos elementos que lhes são indispensáveis. Graças ao progresso da reflexão jurídica, o meio ambiente é direito humano fundamental. Trata-se de uma escala axiológica, de valores jurídicos indiscutíveis tutelados pelo público e pelo privado. A política e a economia não podem assistir nem muito menos promover uma destruição do meio ambiente. Com o auxílio da educação, ambas devem aprimorar uma cultura do cuidado com esta cara Casa chamada Terra.
Este solo brasileiro desde cedo sofreu as dores do desmatamento, do esfaqueamento das reservas naturais com as quais as cortes europeias se banquetearam por séculos. O direito contemporâneo não pode permitir que as castas empresariais perpetuem as tragédias ambientais. A comercialização madeireira e o progresso imobiliário não podem asfixiar o presente e sentenciar um futuro cinza, opaco, sem cor, sem verde e brilho. A PEC 65/2012 lança descrédito sobre uma política jurídica nacional que mutila a natureza em nome de um capital que não pode aguardar as etapas de licenciamento para obras que exigem maior proteção jurídica. Deixando o meio ambiente ao léu, exposto aos mais variados descasos, o Estado permite que este seja agredido pelo setor privado, fecha os olhos diante das ações nocivas de pessoas jurídicas que ainda são presenteadas com largas isenções fiscais. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a exploração da Mineradora Samarco mostram que isto não é progresso. O nome correto para isso é crime. Os fortes ataques contra a Constituição dita cidadã revelam a legalização da depredação do meio ambiente.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

DIREITO, PRINCÍPIOS PENAIS E SOCIEDADE.

O convívio social não pode ser visto como o brinquedo sob os caprichos políticos que disseminam inseguranças de toda sorte e inclusive esta chamada de jurídica. O conjunto de princípios que animam a reflexão jurídica e o papel da pena na sociedade, possuem a função de assegurar que o julgamento não resulte de arbitrariedades, de jogos midiáticos e nem de supostas pressões populares. O ato de julgar não é traduzido por sentenças privadas, não se trata da expressão de uma vingança articulada numa sucessão de etapas. O julgamento na sociedade civil segue o sentimento coletivo de justiça, numa dimensão humanista e integrativa, respeitosa da dignidade do ser humano.
Um destes princípios consiste na legalidade e afirma que um comportamento só pode ser apontado como criminoso e, portanto passível de pena quando previsto na forma da lei (NUCCI, 2008, p. 70). Quanto dito toca a anterioridade da lei (NUCCI, 2008, p. 71) que não é criada como resposta impensada e curvada diante do furor social para desprezar garantias conquistadas. A lei precisa evitar abstracionismos e ser o quanto precisa na exposição das suas intenções. A lei deve ser taxativa e fugir de ambiguidades que repercutiriam na sua aplicabilidade. Este princípio é chamado de taxatividade (NUCCI, 2008, p. 75).
A precisão contida na lei leva ao quesito da individualização isto é, a pena deve ser aplicada considerando o impacto social do crime e a personalidade do autor. Deste modo, a pena não é branda nem excessiva, mas na justa medida necessária para gerar os aguardados equilíbrios sociais (NUCCI, 2008, p. 72). Entre o crime cometido e a pena imputada há um equilíbrio que é pensado pelo princípio da proporcionalidade (NUCCI, 2008, p. 75). A pena diz respeito apenas ao seu autor e este deve cumpri-la nos termos da lei sem possibilidade de abranger qualquer pessoa que não tenha participado do crime. O princípio da personalidade auxilia nesta função de circunscrição da pena (NUCCI, 2008, p. 71).
Uma vez codificada, a lei obedece a vigência e não exerce qualquer efeito diante de condutas anteriores ao seu surgimento, salvo quando implicar um correto favorecimento do réu (CAPEZ, 2009, p. 48). Assim esboçado o princípio da irretroatividade da lei, vê-se ainda o princípio da adequação social, segundo o qual a atividade jurídica não pode criminalizar um costume já absorvido pela inteira sociedade (GRECO, 2007, p. 58). As questões acerca do jogo do bicho e da descriminalização da maconha podem ser inseridas neste espaço e mesmo diante de várias posições não receberam respostas definidas oriundas da comunidade jurídica. A popularidade do jogo do bicho, as reconhecidas propriedades medicinais e o suposto enfraquecimento econômico do tráfico seriam suficientes para legitimar a descriminalização?
Ao lado dos princípios elencados estão os princípios da intervenção mínima (NUCCI, 2008, p. 73) e da insignificância (GRECO, 2007, p. 69), que não são menos intrigantes no convívio contemporâneo. O desenvolvimento jurídico trouxe consigo um aprimoramento litigioso em detrimento de possíveis vias de conciliação. Sendo assim, o direito penal que deve ser o último convocado para dirimir tensões surgidas no convívio social, é chamado com frequência para discutir questões que poderiam ser vistas sob a ótica do direito civil. Por motivos desta ordem, o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo, trancafiadas em lugares que são palco de atrocidades que ferem o princípio da humanidade, segundo o qual a pena não deve ser perpetuada, forçosa, segregar através das expressões de crueldade e nem retirar a vida (NUCCI, 2008, p. 72). Deste modo a atribuição da pena na sociedade brasileira fere em larga escala os equilíbrios esperados no convívio social, já que deixa de ser mínima, imparcial e humana, tornando-se máxima, discriminatória e desumana. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

RELIGIÃO, SERVIÇO E INCLUSÃO

Em nome do filho de Deus se promoveu a morte do excluído e se socorreu apenas o incluído. Talvez este seja um dos obstáculos que deve ser superado quando se quer falar sobre Cristo e nestes dias tem sido um exercício difícil. Materialmente, a igreja católica perdeu uma hegemonia secular na descrição da identidade e da missão de Cristo e até as chamadas igrejas evangélicas fragilizam este papel diante da proliferação de igrejas que são inseridas neste mesmo conjunto, pois diante dos seus discursos constata-se uma distância abissal entre o Cristo apregoado e aquele presente no Evangelho. As questões político-partidárias sobrepõem àquelas espirituais anunciadas por Cristo na sua missão.
A pergunta posta por Kant ressoa nas indagações hodiernas e seria assim reconstruída: O que fizemos? O que estamos fazendo? Desde o chamado primado de Pedro que afunda raízes na escolha feita por Cristo tornando este apóstolo a pedra sobre a qual edifica a sua igreja (cf. Mateus 16,18), vê-se um desejo de circunscrever a ação de Cristo nas páginas de uma história da exclusão. Parece que se reapresenta a tentação genesíaca que desvela um desejo presente no coração humano: ser deus. O ser humano procura ser um deus melhor, mais aprimorado e em sintonia com os tempos atuais, mas se não for possível suprimir este Deus antigo é bom que seja guiado pelo deus humano.
O Deus descrito por Cristo na sua missão não é alguém de outro mundo que quer ver de perto como é construído o convívio humano, mas sim o Deus que se faz humano e, portanto aceita os desafios desta humanidade. O objetivo não é impedir, mas sim apontar uma rota de concretização deste desejo presente no coração humano. O Deus trazido por Cristo quer mesmo ser indagado, quer ser conhecido e por isso abre as portas da própria vida para ser inteiramente acessível, sem controle de entrada, de cor, de sexo e credo. Estes derivam das convenções humanas que são falhas quando degeneram em órgãos de exclusão. O controle exigido por Deus reside no serviço que gera uma concreta inclusão.
A religião contemporânea na variedade dos seus credos e expressões precisa encontrar uma identidade que ofereça respostas que não foram dadas pela filosofia, pela política e demais ramos do saber. Talvez se dedicou muito tempo na construção de igrejas suntuosas, refrigeradas e dotadas de toda comodidade e por conta disso se esqueceu que a mensagem trazida por Cristo visa incomodar. É preciso gritar para que a religião não se torne inerte e saiba colocar-se ao lado daquele que serve. O Cristo do Evangelho não se serviu da religião, mas pelo contrário, foi por esta aniquilado. Ao lado das ideologias exclusivistas, a religião repetirá as cenas conhecidas de destruição, mas pondo-se ao serviço do ferido, do faminto e de qualquer excluído, tornar-se-á sinal de fraternidade e de inclusão.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

DIREITO, INTERPRETAÇÃO E INCLUSÃO SOCIAL.

Talvez ainda se encontre certa dificuldade de leitura para desvelar a relação existente entre direito e interpretação. Haverá quem diga: “O direito deve ser apenas aplicado e não interpretado”. A interpretação não consiste numa leitura descomprometida com os variados elementos que originam a realidade circunstante indagada pelo direito. Na sua intransferível tarefa de motivar os necessários processos de adaptação social, o direito deixa de lado o comodismo das receitas prontas e se debruça sobre a peculiaridade do caso, considerando circunstâncias, personagens, motivações e demais marcas históricas.
Na obra “Hermenêutica e aplicação do direito”, Carlos Maximiliano (2011, p.8) enfatiza que:
Interpretar uma expressão de Direito não é simplesmente tornar claro o respectivo dizer, abstratamente falando; é, sobretudo, revelar o sentido apropriado para a vida real, e conducente a uma decisão reta. Não se trata de uma arte para simples deleite intelectual, para o gozo das pesquisas e passatempo de analisar, comparar e explicar os textos; assume, antes, as proporções de uma disciplina eminentemente prática, útil na vida diária [...].
Como qualquer outra ciência, o direito não pode ser minimizado por conta das falhas nele encontradas. O direito não é uma dádiva dos deuses, mas uma construção humana e por isso, repleta de lacunas que devem ser preenchidas também através da interpretação. O breve folhear das páginas da história do direito mostra que as melhorias advindas das conquistas legais são indiscutíveis, mas existe sempre algo que escapa do olhar jurídico. É com a ampliação deste olhar que constatam-se de um lado as façanhas do direito e de outro, desafios sociais que devem ser relidos à luz da justiça, da eficácia e da equidade.
A interpretação exerce o papel de conduzir a lei para além de si mesma, da sua erudição linguística que por vezes cria um abismo intransponível entre o seu sentido e os anseios de cidadãos que aumentam o conjunto daqueles que são excluídos de tantas garantias contidas no texto legal. É tarefa da interpretação verificar os sinais vitais da lei, mantê-la oxigenada levando aos seus pulmões o ar puro de uma sã analogia capaz de dinamizá-la, revelando que não se trata de uma letra fria e indiferente mas que pelo contrário, a lei se exercita e vibra quando realiza a sua função social de mobilização em defesa da vida.
Uma vez positivado por meio do labor legislativo, o texto é elevado e transformado em lei, quando interpretado, o texto é sacudido e assim movimentado, retoma um frutuoso diálogo com aquelas situações que causaram sua origem, mas, sobretudo com realidades derivadas que compartilham os compromissos de visibilidade e proteção da dignidade humana. Aqui reside a importância da escolha daqueles que são responsáveis pela elaboração das leis. Quando não brotam de uma correta interpretação, as leis poluem o convívio social e lançam sobre este mesmo, o lixo não reciclável da desigualdade nas suas mais variadas faces.
Somente inserida num movimento interpretativo que a acompanhe desde o surgimento até o momento da sua aplicação, a lei estará protegida contra os particularismos e os partidarismos que a ameaçam e a enfraquecem, distanciando-a das suas reais finalidades sociais. Assim a lei não silenciará diante dos obstáculos que retardam as emancipações aguardadas, nem sequer diante das castas sejam estas políticas ou religiosas e encontrará em si mesma a força necessária para removê-los, favorecendo um desenvolvimento socioeconômico que manuseie de forma harmoniosa os instrumentos da inclusão social.

sábado, 30 de julho de 2016

Deus e o coração humano a partir de Agostinho

As Confissões é uma das obras que marca o itinerário espiritual de Agostinho: o mais humano de todos os santos. Talvez seja este o motivo da grande identificação que há com Agostinho. O fato de conhecer seus pecados faz com que seja sentido como um de nós. Como alguém que bem nos conhece e que passou por tudo aquilo que nós já passamos. A vida deste jovem africano repleta de altos e baixos, desperta atenção por muitas causas e ainda por não ter vivenciado um lar somente cristão. As orientações do pai pagão foram as mais incisivas, preenchendo o coração cristão de sua mãe com inúmeras preocupações.
Nesta obra Agostinho mostra que toda trajetória humana é caracterizada por uma busca de Deus. Mesmo quando não se dá conta o coração humano está procurando Deus através de variados itinerários sejam estes, políticos, acadêmicos, artísticos, musicais e religiosos. Neste trajeto o ser humano se depara com propostas que distanciam e aproximam de Deus. Há uma inquietação que é sinônimo do coração humano e que faz de Agostinho o primeiro dos existencialistas em sede de filosofia cristã, precedendo nomes quais Marcel, Maritain e outros. Movida por questões não respondidas a inquietação se abriga nas mãos de Deus.
Se o percurso humano é relido por Agostinho a partir desta busca até mesmo tortuosa de Deus é preciso situar o lugar privilegiado no qual este Deus procurado se deixa encontrar. Tendo revisitado toda a obra das suas mãos, Deus escolheu o coração humano para armar a tenda da sua presença suportando as intempéries derivadas do exercício do livre arbítrio. Procurá-lo sem olhar para si próprio equivale a subtrair esforços antropológicos capazes de desvelar que a maior vocação humana implica transformar-se no belo abrigo de Deus.
As páginas históricas mostram que frequentemente Deus foi expulso do coração humano por violar com ingerências sua imprevisível capacidade de decisão. Sem aceitar critérios oriundos dos lábios de Deus, o coração humano se deixa atrair por ídolos impostos pelos modismos culturais responsáveis pela geração dos atuais processos de despersonalização. Infligindo sobre Deus a dura pena de caminhar errante como um banido do convívio social, constata-se que o próprio coração humano pereceu.
Quiçá a filosofia cristã com seus questionamentos mostre quais são as verdadeiras causas da demissão deste Deus que tem sido visto como um ultrapassado e incapaz de satisfazer os caprichos humanos. A religião é autêntica cada vez que sinaliza através da sua liturgia que o coração humano sente falta não de um Deus defendido mas fraternalmente vivido, não de um Deus representado mas partilhado, não de um Deus preocupado em converter mas sobretudo em acolher, não de um Deus disposto a condenar mas pronto para libertar.

sábado, 23 de julho de 2016

A lei, o negro e a sociedade brasileira

A lei com as suas controvérsias é uma das coisas mais necessárias para a convivência humana. Dentre os papéis exercidos pela lei está aquele que consiste em polir posturas arbitrárias responsáveis pelas pseudopolíticas que corroem todos os órgãos sociais. A lei tem a função de cuidar para que nada violente o que existe de mais nobre: a vida humana. A lei pretende responder a uma pergunta que marca o itinerário social: o que devo fazer? A lei é tão indispensável que se pode pensá-la como o ar que dinamiza toda a ação política. É por este motivo que todo cuidado é pouco com aqueles que elaboram a lei. Uma vez contaminada por alianças espúrias, a lei provoca graves e até irreversíveis fraturas sociais.
O percurso sociopolítico brasileiro mostra que lei e justiça nem sempre se aproximam. Por vezes a lei não gritou em defesa da pessoa humana e assistiu a sua cruenta depredação. Quando se olha para este Brasil domesticado por seus colonizadores vê-se que por pouco - apenas doze anos - não se entrou no século XX cultivando ainda a ferida da escravidão. Foi necessário esperar um descuido, como se estivesse fazendo algo inaceitável, para que o Brasil guiado por uma mulher, contasse com a breve, incompleta e necessária Lei Áurea.
A lei não é uma varinha mágica que sancionada retira a liberdade de uma cartola histórica. A lei providencia elementos que recuperem tudo aquilo que foi negado a qualquer lesado. Quando esqueceu de oferecê-los, a lei não gerou igualdade e blindou desigualdades mostrando que diante dela não somos assim tão iguais como consta nos seus belos artigos. A Lei Áurea não forneceu instrumentos que sanassem as graves feridas da escravidão e disse apenas que o sangue do negro não mais contaminaria o nobre latifúndio brasileiro. Não houve um empenho concreto da lei para uma válida extinção da escravidão. O que se fez foi somente favorecer a sua continuidade através de outras inaceitáveis modalidades que deram ao negro uma dura clandestinidade como recompensa por ter enriquecido esta sociedade.
O passado escravocrata brasileiro surgiu do nada, não tem culpados e nem deve respostas? É possível aceitar que o negro deixe apenas de ser escravizado e seja marginalizado? O Estado pode cruzar seus braços após ter colaborado com o teatro do negro escravizado? A lei hodierna deve repetir os erros do passado e deixar de promover uma real inserção social? Tudo o que este Brasil deve ao negro passa através dos canais educacionais outrora negados. A lei 12.711/12 chega com um enorme atraso e com a tarefa social de sanar as desigualdades abissais movidas pela vergonhosa falta de compromisso político com o negro oprimido que não aceita uma liberdade sancionada e quer construí-la por meio de políticas públicas efetivas.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Os movimentos sociais negros em busca de cidadania.

A característica central do movimento social reside numa ordenada mobilização em prol do combate aos mecanismos que visam o ocultamento da identidade negra na variedade das suas expressões religiosas e culturais, através de um itinerário de conscientização que repudia tentativas de invisibilidade. Tal itinerário foi enfatizado pela imprensa negra através de jornais que aqui circularam por muitas décadas. Partindo de cidades do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e tantas outras, este instrumento de comunicação divulgou os problemas enfrentados pela população negra no Brasil que ao tornar-se República (1889), privilegiou a mão de obra europeia capaz de impor ulteriormente a absorção da própria identidade cultural e religiosa. A imprensa negra exerceu o papel de denúncia contra os acessos negados ao negro que em muitas cidades da República que engatinhava sequer era imaginável sua presença nos partidos, igrejas, teatros e escolas.
É possível identificar uma passagem no Movimento Social Negro que vai de uma conscientização social rumo ao engajamento no cenário político, precisamente na organização intitulada, Frente Negra Brasileira que ampliava a voz de milhares de negros excluídos inclusive dos partidos políticos brasileiros. Uma das reivindicações atendidas durante o governo Vargas consistia na entrada de negros na guarda civil da cidade de São Paulo. Mesmo inspirando-se em propostas políticas totalitárias, como aquelas de Hitler e Mussolini, a Frente Negra Brasileira contou com mais de vinte mil associados reunidos em volta de ideais conservadores como os conhecidos Deus, a pátria e a família, utilizados nas manifestações que originaram uma das mais cruentas ditaduras que estão trancadas nos porões do esquecimento.
Uma apresentação dos movimentos que militaram a favor dos negros não dispensa a presença da chamada União dos Homens de Cor, na segunda metade dos anos 40. Mesmo utilizando uma expressão hoje chamada de politicamente correta, as metas perseguidas por esta já visavam conceder ao negro, instrumentos que foram negados quais poderio econômico, moradia digna, saúde e educação. Talvez aqui resida a abordagem que mais se aproxima de quanto construído no Brasil hodierno. Há uma superação de um plano assistencialista e a sucessiva elaboração de estratégias que norteiem a construção da cidadania. Não de menor importância, o Teatro Experimental do Negro, fundado na cidade do Rio de Janeiro (1944) foi responsável por importantes elaborações que geraram espaços de conscientização, quais: o jornal Quilombo, o Instituto Nacional do Negro, o Museu do Negro e o I Congresso do Negro Brasileiro.
Cabe ressaltar a presença de outro precioso instrumento de cidadania criado em 1978, chamado Movimento Negro Unificado. Trata-se de um ano bastante relevante na releitura da sociedade brasileira. É um momento propício para o fortalecimento das classes operárias e no forte clamor das reivindicações, aquelas bradadas pelos negros também encontraram uma parceria frutífera. De modo que a luta em prol das efetivas condições de emancipação do negro passa também pela crítica a um modelo capitalista desconhecedor de quaisquer valores que não se prostrem diante do lucro desmedido e desumanizador. As pautas aqui exigidas são aquelas que abraçam as parcerias na defesa do trabalhador negro, despreparado e explorado, até a introdução do estudo da história da cultura africana nas escolas do território brasileiro. Não se ama aquilo que não se conhece. E o cancelamento do teor cultural africano no Brasil só alimenta a indiferença, a ignorância disfarçada de intelectualidade, a transmissão da discriminação e do ódio racial.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

O holocausto dos negros no Brasil

Tudo parece exagerado quando se encara a história de um povo dizimado pelo holocausto. Os ouvidos da civilização não ouvem o barulho ensurdecedor de tanta agressão. Desde a segunda metade do séc. XVI os negros foram enjaulados no Brasil. Surge assim a questão: Houve um holocausto dos negros no Brasil? Em que consiste um holocausto racial? Na maioria das vezes se concentra o holocausto na tragédia que ceifou a vida de milhares de hebreus. É preciso dizer que em todo latifúndio brasileiro funcionava um horrendo campo de concentração com requintes de restrições e crueldades que em nada deixam a desejar diante das atrocidades que o regime de Hitler cometeu contra uma imensidão de hebreus. A isto se chamou de senzala, lugar no qual há o nada e onde se é desapropriado da alma.
O holocausto implica o sacrifício que é expressão de gratidão por um benefício recebido. É um agradecimento pelo êxito numa colheita, pelo animal caçado, pela vida preservada diante de uma peste avassaladora. Desde uma abordagem mítico-religiosa, o holocausto exige sempre o derramamento de sangue que livra o chão da história dos parasitas sociais. Neste caso, o holocausto recebe um acento sistemático perseguindo um povo sobre o qual é imposta a difícil tarefa da expiação que consiste numa necessária purificação. Somente livres daqueles que são as pragas da sociedade haverá a tão sonhada ordem e progresso.
O negro açoitado é apresentado como um vencido, como um modelo que deve ser evitado. O negro mutilado e detido, é visto como um bicho ferido no uso sagrado do livre arbítrio. O negro agredido sufoca qualquer tentativa daquilo que por longos anos foi erroneamente chamado de fuga, pois só se tratava do anseio natural de uma liberdade até então negada. O negro castigado acalmava os ânimos e minava quaisquer planejamentos de liberdade. Domesticados, os negros sentiam o efeito da pérfida água fria lançada sobre as frustradas expectativas de cidadania. Não só a atividade jurídica não se comprometeu com o negro escravizado, mas respaldou a agressividade dos senhores, favorecendo o poder dominante.
Durante os anos tortuosos da escravidão houve no Brasil uma verdadeira engenharia do mal capaz de fabricar os mais temíveis objetos comercializados em plena luz do sol numa economia desumana que entretinha uma plateia sempre pronta a aplaudir a engenhosidade destes instrumentos avaliando sua eficácia em conter o negro, verdadeiro bicho brasileiro. Inseridos numa pedagogia da opressão, tais itens eram apresentados ao negro desde cedo para que soubesse o que lhe aguardava, caso deixasse o cativeiro em busca de liberdade.
Num dos holocaustos acontecidos neste Brasil que não lê sua própria identidade histórica viu-se com naturalidade mulheres violentadas, homens castrados e crianças abandonadas pelo fato de pertencerem a um povo que sofreu indizíveis violências físicas e psicológicas. A quem se ofereceu tamanho sacrifício? E como repercute no imenso território brasileiro? O negro foi sacrificado em nome do crescimento econômico e da manutenção do poder. Os suplícios impostos sobre estes homens e mulheres causaram uma sociedade marcada pelas feridas da desigualdade que somente serão sanadas quando utilizados mecanismos de emancipação destinados aos filhos e filhas de uma geração segregada pela escravidão. Sufocado pelas máscaras atrozes da injustiça a lei 12.711 ecoa um forte grito de cidadania.

sábado, 18 de junho de 2016

O negro, a religião e a escravidão

Tomando o território brasileiro, os portugueses transformaram tudo o que pertencia aos indígenas numa terra de santa cruz. Cultos e divindades dos nativos caíram num segundo plano e cederam espaço ao credo religioso dos invasores. Conhecendo a língua indígena estes logo cuidaram para que recebessem adequada catequese de modo que o quanto antes se preparasse um povo disposto, cristão e precisamente se obtivesse uma nação católica, imagem e semelhança da civilização católica presente nos séculos medievais da história.
Pouco depois o mesmo aconteceu com a chegada dos negros no frutífero solo brasileiro. Era preciso abrir mão da própria religião para assumir o credo religioso dos senhores que aqui se instalaram com seus oratórios repletos de santos festejados em várias épocas do ano. A religião marca intimamente a identidade de um povo que possui um modo próprio de transcendência. Dia após dia, se instalou aquela dicotomia que se chamaria de um culto público e um culto privado. Nas suntuosas igrejas deste país, o padre – filho de uma nobre família – presidia o culto oficial reunindo os escravocratas em busca de um consolo para a consciência opressora. No silêncio fétido da senzala, entre um castigo e outro, o negro encontrava tempo para transcender auxiliado por divindades travestidas de catolicidade. Quando língua e religião são mutiladas, a identidade de um povo é gravemente adulterada.
A Constituição de 1824 no artigo 5º é bastante clara quando garante a possibilidade de outros cultos religiosos desde que não atrapalhem a liturgia hegemônica do culto católico. Assim as expressões religiosas africanas foram conduzidas para longe dos cartões postais brasileiros que permaneciam abertos só para as solenes manifestações religiosas oficias. O negro não apenas abdica de sua raiz religiosa mas é obrigado a receber os sacramentos católicos, únicos capazes de conseguir melhor destino eterno visto que este terreno foi dominado pelas condições precárias, pela ausência dos afetos familiares e pelo desespero. Talvez aqui está uma das maneiras de tocar a capa da catolicidade que cobriu o teor de agressividade que originou a religiosidade brasileira com sua maquiagem de hospitaleira. Missas, sacramentos e homilias serviram para anestesiar o negro escravizado no Brasil. O catolicismo de então não foi um instrumento eficaz de libertação, muito pelo contrário, visou reduzir o cheiro insuportável da opressão que a escravidão lançou neste nosso país.
A religiosidade africana também foi marcada como milhares de negros que tiveram os seus corpos dilacerados pelo ferro quente designando sua pertença e submissão ao senhor. Enquanto nas grandes catedrais deste país se cultuava um deus temível, branco e europeu, nas periferias estava um deus desconhecido e de segunda categoria para ouvir os negros. Este seria no mínimo um deus assaz duvidoso e sem muito o que fazer para ouvir aqueles e aquelas que não possuíam bens, nem grandes propriedades e nem belas vestes vistosas. Além de despersonalizar o negro os detentores das rédeas do poder, responsáveis também pela interpretação teológica e política da época, logo demonizaram a própria religião afro. Se o catolicismo dominante financiado pelos latifundiários foi a religião da conformação, a religião afro deu passos fortes tornando-se assim, valioso instrumento de reivindicação. Com seus cantos e danças que manifestam a alegria da vida embora sofrida e oprimida, a religiosidade afro luta pelo direito de ser outra, totalmente livre nas suas manifestações. Sem quaisquer entraves sociais e desimpedida, a religião afro também grita por cidadania.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Negro, discriminado e em busca de cidadania.

Se há uma característica predominante na reconstrução histórica das relações sociais brasileiras, esta reside na produção da discriminação do índio e do negro, simplesmente por não serem europeus, brancos e católicos. Por mais que se veja no decorrer dos séculos uma aproximação dos biótipos através dos laços sentimentais e afetivos, estas relações permanecem no aconchego do lar e repercutem pouco sobre o tecido social, que logo deseja saber o que houve, quantos obstáculos foram superados e o que será feito para que filhos e filhas desta união, não sintam o peso insuportável do fardo social presente nas faces da discriminação.
Encontra-se numa visual social que as conquistas obtidas do século XIX aos dias atuais, tornaram o Brasil um país que se destaca pelos passos largos dados na construção da inclusão social. De modo que é até possível que se reveja algo no quadro social brasileiro, mas a discriminação é uma carta que permanece trancafiada nos porões do Brasil negreiro. Pensar o Brasil contemporâneo como uma realidade na qual não há discriminação racial é o mesmo que acreditar que há trabalho digno para os pais, que as crianças não passam fome e estão na escola, que a merenda escolar não é desviada por aqueles que deveriam cuidar da coisa pública, que os hospitais públicos funcionam com padrão FIFA, que as mulheres não são agredidas e estupradas. É retirando a venda dos olhos que se constata o incontestável.
A discriminação impõe sobre o negro brasileiro os mesmos castigos que reduziram a vida dos seus antepassados mostrando que a cidadania sempre foi um privilégio reservado para poucos. Assim, o negro é associado a tudo aquilo que não se quer ver, que não condiz com as boas decisões políticas, com os lugares frequentados por uma casta seletiva, com o aprendizado educacional reservado aos filhos das elites brasileiras conhecidas pelo labor em prol da estratificação da desigualdade social. A mácula social se expressa de maneira tão sorrateira que o gari negro, a prostituta negra, o presidiário negro, a faxineira negra e o assassinado negro, são conservados nas gavetas da normalidade social, enquanto que a universitária negra, o engenheiro negro, a advogada negra, o médico negro, sinalizam uma anormalidade social que somente é compreendida no contato com a fonte racial branca, naturalmente vencedora e por isso mesmo detentora inquestionável das hegemonias sociais.
Quanto dito aparece amplamente descrito através de uma aparelhagem midiática que reserva ao negro os papéis condizentes com sua natureza submissa e serviçal. Demarcados lugares e papéis, cabe ao negro lutar para ter um desempenho de excelência que fará dele um de nós. O processo de negação do negro que marca fortemente a sociedade brasileira não se deu só através das indizíveis atrocidades físicas cometidas, mas atingiu o campo da consciência fazendo com que o negro abrindo mão de si, isto é da sua identidade cultural, afirmasse a própria existência distanciando-se de si e assumindo a cultura daquele outro que captura e agride. Sendo assim, cabe ao negro deixar de ser-negro para ser o outro-branco.
Deste modo, a lei nº 12.711/12 apresenta-se como um acesso histórica e socialmente negado, é a visibilidade daquelas e daqueles que por séculos estiveram à margem de uma sociedade que os relegou seja por motivos econômicos, políticos, jurídicos e até religiosos. A lei 12.711/12 é um importante instrumento de construção da cidadania que foi retirada e que se projeta para além do socialmente permitido. Implica a necessária abertura de espaços nos quais são compartilhados os aspectos culturais do bem comum social. É o resultado de um país que ensaia largos passos na direção dos que sempre foram historicamente lesados. É a voz que acorda o gigante adormecido para conscientizá-lo deste seu papel intransferível – esquecido por quinhentos anos –, que consiste em promover condições iguais para todos. 

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Filosofia, Cristo e Justiça.

Quando as circunstâncias que delineiam o cotidiano são relidas com o intuito de inseri-las num único conjunto constata-se uma agressão de proporção incalculável que macula a finalidade de toda autêntica interpretação: a ampliação dos horizontes do conhecimento. Se há uma caraterística marcante em todo itinerário contemporâneo é a clara percepção da excessiva segmentação, a identificação dos similares e a sequente ocultação da diversidade. O escopo de toda interpretação reside na inadiável inclusão do diferente e nos respectivos caminhos de emancipação.
Desde os primeiros passos do conhecimento a filosofia veste a temível camisa da crítica. Não se trata de uma crítica excludente que sentencia imediatamente o encarceramento do diferente. Singularizar não é uma tarefa social exercida pela filosofia, mas sim custodiar todos aqueles elementos que incitam o dinamismo das mais variadas formas de pluralismo. Quando só dialoga consigo própria, que benefício causa a desestabilizadora ação filosófica? A religião é uma valorosa parceira da filosofia que a auxilia na realização dos almejados ideais sociais.
Considerando a amplitude do fenômeno religioso construído em torno do movimento desempenhado por Cristo, vê-se como entre as atividades religiosa e filosófica existem importantes pontos comuns que repercutem sobre o quesito inclusivo indispensável para todo espaço social. Na relação que instauram com uma determinada cultura, ambas estão prontas para criticá-la e redimensioná-la quando estiver em jogo a defesa da integridade da pessoa humana, que em toda circunstância é sempre uma realidade indivisível e irredutível.
O percurso privilegiado por Cristo enfatiza o valor incomerciável da pessoa humana em variados momentos que provocam uma reflexão capaz de aproximar filosofia e religião. Ressalta-se o cuidado de Cristo com os doentes, com homens e mulheres que sob o efeito alienante de um ilusionismo religioso foram distanciados dos recursos do convívio social. Cristo foi um obstáculo removido pela sociedade do seu tempo por defender a autonomia entre as esferas temporal e espiritual, a dignidade da mulher e, sobretudo por não ser aliado de uma política corrupta que camufla as tentativas que visam uma clara manutenção do poder dissociado dos critérios da justiça.
A edificação da justiça é convidada a ultrapassar o meramente textual, o ritualismo que transforma a atividade jurídica num culto reservado para poucos. Como se vê, a religião e a sociedade justa não são perspectivas assim tão diametralmente opostas como pensam as óticas unilateralistas que empobrecem o debate contemporâneo. A relação construída neste percurso entre filosofia, religião e justiça não só não é arbitrária, mas evidencia que esta tríade compartilha um indiscutível escopo comum, na medida em que há uma valiosa soma de indispensáveis esforços que buscam o pleno desenvolvimento da pessoa humana ao mesmo tempo questionadora, religiosa e sedenta de justiça. 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Os movimentos sociais e o holocausto dos negros: Uma ampliação da lei 12.711.

Arrancados dos seus lares, os negros foram jogados sobre as terras do Brasil por volta do ano de 1580. A reflexão jurídica que derivava dos filhos dos nobres senhores formados nas universidades europeias e, sobretudo portuguesas, pouco se comprometeu com as situações atrozes vivenciadas pelos negros. E em muitos casos, procurou até mesmo elaborar suporte legal para que tais situações repousassem candidamente sob as asas daquilo que é devido e, portanto não deveria perturbar quaisquer sãs consciências.
Quando o século XIX cansado de si próprio, já tinha lançado as cartas de tantos horrores, os negros foram presenteados com o texto da Lei Áurea (1888). É um texto legal que celebra a liberdade? A liberdade é dada por uma classe dominante ou seria um direito inalienável, inerente ao humano enquanto tal sem considerar adjetivações de nacionalidade, opção sexual, cor, religião e quaisquer outras? Depois de serem sugados por séculos, de verem a morte de seus caros, de terem suas mulheres violentadas, os negros quais bagaços de cana, foram lançados nas lixeiras da sociedade brasileira.
Os dois únicos artigos da Lei Áurea não preveem indenizações pelos trabalhos prestados durante séculos dia e noite sem as mínimas condições para desempenhá-los, sem uma alimentação capaz de repor os esforços realizados, sem cuidados com a saúde e sem moradia digna. Aliás, se pôs a questão: Onde residirão os negros que não servem mais? Assim, constrói-se uma abordagem mágica acerca da lei, segundo a qual bastaria emaná-la para que instantaneamente sejam solucionadas todas as problemáticas sociais. A lei eficaz precisa perguntar: Existem as condições para as necessárias emancipações?
Talvez aqui resida uma das maiores dificuldades para abordar a problemática da meritocracia. Considere-se o plano social no conjunto das suas organizações políticas que viabilizam as mais diversas conquistas, como uma pista de atletismo para corrida de mil metros. Em seguida, encare-se cada atleta como alguém que corre para alcançar a cidadania. Naturalmente surgiria a pergunta sobre a preparação reservada a cada atleta. A mesma preparação no rigor de planejamentos e cuidados foi destinada a cada atleta? Ou será que houve uma seleção prévia, socioeconômica que separou os atletas em tela? Nesta corrida tomaram-se medidas para que todos partam da mesma linha de largada? É admissível que poucos privilegiados larguem posicionados já nos novecentos metros, enquanto milhares de pessoas privadas do básico, sequer alcançam a linha de largada? Numa leitura afetada por tais vírus sociais até a meritocracia claudica e logo se aniquila. Não há lugar para o mérito num Brasil que surge do holocausto contra o índio e o negro.
Os movimentos sociais são marcados profundamente pela luta em prol daquelas pessoas que sempre foram varridas para baixo dos tapetes sociais. Tais movimentos são canais dedicados que ampliam o grito desesperado e até então sufocado dos oprimidos. Neste século intrigante, um dos frutos esperados desta luta se verificou na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, primeiro espaço de educação superior que em 2002 inicia o sistema de cotas para índios, deficientes físicos e negros. Esta iniciativa de combate aos instrumentos de exclusão social, contou com a adesão de outros núcleos de educação, de tal modo que em 2012 o país que dizimou índios e negros aprovou a lei 12.711.
O artigo 7º da referida lei prevê que no espaço de 10 anos, o governo brasileiro se empenhará para que “pretos, pardos e indígenas” tenham acesso ao ensino superior. Surge a pergunta: O que são estes 10 anos diante de mais de 3 séculos de exploração? A educação no Brasil das desigualdades sociais sempre foi reservada aos filhos da classe dominante. Por esse período tão exíguo diante de tantos crimes cometidos, este breve artigo propõe a ampliação do mesmo para que atinja 50 anos prorrogáveis por mais 50 anos, caso não se alcance a proporcionalidade e as justas adequações sociais. As cotas não são um favor, nem são uma esmola social, mas sim uma dívida histórica. As cotas denunciam um bem que foi negado de maneira sistêmica e que deve ser devidamente dado aos descendentes deste horrendo massacre social que foi o holocausto dos negros.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Nietzsche, o cristianismo e o ressentimento.

Os filósofos não são seres iluminados que trazem mensagens divinas com a finalidade de libertar a humanidade dos seus males. Cada filósofo singularmente compreendido por mais genial que seja está sempre inserido numa história das ideias. O que determina a peculiaridade de uma perspectiva é a ênfase dada a questões que até então não foram vistas com singular especificidade. Há algo que aguarda o olhar atento de uma leitura capaz de mergulhar nas entrelinhas e retirar preciosidades ainda intactas.
Coube a Nietzsche retomar com rigor uma crítica já presente em outros espaços da filosofia. O próprio Renascimento apresentou-se como ponto contraposto ao inimigo número um da humanidade, responsável por tantas problemáticas inenarráveis isto é, o cristianismo. Já Maquiavel o acusava de ter enfraquecido as cidades e comprometido o desenvolvimento econômico com uma ética da virtude centrada sobre a compaixão, a acolhida, a piedade, a mansidão. Todos esses valores abalaram as muralhas do Reino. O filósofo florentino alfinetou o cristianismo, mas de certo modo aprendeu a conviver com o mesmo. A sua crítica soube calar diante de um poderio político e econômico que flertava com o religioso. As imagens do leão e da raposa já mostram que a modernidade filosófica verá no cristianismo uma companhia perigosa, contudo é preciso rugir no momento certo, pois assim não se colocará em risco a necessária manutenção do poder.
O arco destes três séculos que do Renascimento levam ao trabalho elaborado por Nietzsche, revela grandes nomes que não pouparam duras críticas ao cristianismo como, por exemplo, Feuerbach, autor da obra A Essência do cristianismo, e sucessivamente Karl Marx, que do ponto de vista da leitura humanista, recebe influência feuerbachiana. As promessas do cristianismo são danosas, pois são fontes de uma perniciosa alienação. O espaço da realização humana é o paraíso celeste, lugar no qual está a recompensa por tantos sacrifícios feitos e particularmente pela indispensável renúncia de si. Como se vê, Nietzsche se encontra numa cultura filosófica já endereçada na critica ao cristianismo.
O mais sórdido e duradouro plano que alcançou todos os cantos da terra consiste nesta vingança que anima o cristianismo. Na ótica de Nietzsche o cristianismo é religião dos fracos, dos humilhados que agora ressentidos serão consolados por toda eternidade. Nesta, não haverá lugar para os fortes, os vitoriosos e para aqueles que se realizaram. A estes, que não dominaram as paixões caberá o castigo eterno descrito com requintes de crueldades. Na eternidade, os escravos assumirão o senhorio tão sonhado que lhes foi negado e assim mostrarão que todo o desenvolvimento político, cultural e científico que suscitou tantos esforços e lutas incontáveis, não passava de pura fantasia ou mera ilusão.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Religião, Pena e Ressocialização.

A árdua tarefa que consiste em criar as necessárias adaptações sociais nem sempre foi exercida pelo direito. Antes mesmo de vê-lo percorrendo com sã autonomia as estradas da história humana, esse papel foi desempenhado pela religião, indispensável para conter as fúrias dos deuses, responsáveis diretos por todos os sucessos e insucessos da humanidade. Com o fortalecimento do monoteísmo e o sucessivo advento do cristianismo, esta função anteriormente compartilhada com a inteira assembleia dos deuses, agora pertence somente ao Deus que se apresenta sem reservas através da instigante mensagem de Cristo.
Retomando alguns aspectos do livro do Gênesis, desponta a narração do fratricídio cometido por Caim. A terra banhada pelo sangue de Abel enfatiza como desde cedo religião e violência se contrastam. Emerge destas linhas bíblicas a identidade de um Deus que se preocupa com a morte dos seus e, portanto exige justiça. Assim a morte de Abel não passa despercebida e as mãos da impunidade não conseguem sufocá-la. É preciso punir Caim? Que tipo de punição o aguarda? Uma vez julgado, Caim terá que vagar numa terra com a qual não possui mais quaisquer laços de amizade e enfrentará as severas hostilidades.
Contudo, Caim é marcado por Deus e mesmo tendo cometido um crime bárbaro, permanece protegido, tutelado por garantias que enfatizam o indiscutível princípio da dignidade da pessoa humana. Nesta leitura do fenômeno jurídico não há espaço para compensar o ceifar de uma vida retirando outra. Esta justiça não se expressa através dos mecanismos da vingança e não se deleita em punir pelo simples prazer da punição. O ato de punir tem finalidades muito específicas, pois distancia para reaproximar, para reinserir com uma maior consciência do seu valioso papel na construção harmônica da convivência social.
A decisão tomada por Deus nas linhas do livro do Gênesis não é expressão de um conformismo com o terrível teatro da violência. Aqui surge o perfil de um Deus entristecido, mas que ao mesmo tempo não cessa de olhar as expressões humanas com uma inesgotável esperança na sua capacidade de mudança, quando são dados instrumentos indispensáveis para tal façanha que implica uma inclusão transformadora. Seguindo uma abordagem religiosa, Deus prevê que esta inclusão se dê através da sua Palavra, fonte de toda lei justa e eficaz. Numa leitura política, cabe ao Estado fornecer os elementos necessários como, a saúde, a educação e o trabalho, de modo que este retorno ao contexto social seja devidamente preparado. Os organismos responsáveis pelo progresso cultural não podem permitir o surgimento de novos processos de animalização da pena, que feririam gravemente o direito e os distanciariam das suas reais finalidades.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

O dia 17 de abril e as lacunas da Constituição: Vice-presidente versus Presidente?

Os sentimentos, os anseios e as conquistas de um país, alcançadas graças ao trabalho realizado por movimentos sociais, sindicatos, classes políticas e empresariais, geram esta Carta macro política que é a Constituição. Nesta, encontram-se direitos e deveres que regulam as multíplices relações entre o Estado e o cidadão, garantindo o exigente protagonismo na elaboração de um tecido político que não resulte de arbitrariedades escusas, mas de princípios norteadores comuns. Desta forma, a Constituição exerce função pedagógica, favorecendo a indispensável educação política que suscita o autêntico exercício da cidadania.
No quesito das atribuições reservadas ao exercício da Presidência da República, a Constituição contempla a emissão de decretos que visem a “organização e o funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa” (Art. 84. VI, a). Concomitantemente, é dever da Presidência “enviar ao Congresso Nacional [...] o projeto de lei de diretrizes orçamentárias” (Art. 84. XXIII). Aqui estão as raízes que nutririam um processo de impedimento contra o Presidente neste país continental, com um passado colonialista, escravocrata e ditatorial que lança sombras para inibir consagradas conquistas contemporâneas.
A eleição do Presidente da República traz consigo o vice-presidente outrora escolhido. Ouvindo o partido e coligações, escolhe-se um nome útil que atraia votos para a vitória nas eleições já no primeiro ou posteriormente no segundo turno (Art. 77. § 1.º; 2.º). Dentre as promessas assumidas durante a posse, ambos comprometem-se a sustentar a união do país (Art. 78). Dos artigos da Constituição, emerge um perfil do vice-presidente dotado de prudência e discrição. E ainda, conhecedor dos limites dos seus possíveis exercícios que se dão somente quando convocados diretamente pelo Presidente eleito com maioria dos votos no país. Estas e outras virtudes republicanas concretizaram-se admiravelmente em nomes quais: Itamar Augusto Cautiero Franco (1990-1992), Marco Antônio de Oliveira Maciel (1995-2003) e José Alencar Gomes da Silva (2003-2011).
Diante dos fatos vivenciados, a Constituição faz uma releitura de si, para analisar o papel da vice-presidência. A esta não cabe exigir protagonismos que foram supostamente negados, nem mesmo recompensas por mediações realizadas durante as turbulências que caracterizam todo e qualquer governo. Quando não se é capaz de percorrer as circunscrições das próprias funções, se abre espaço para perversas degenerações instaladas sob as asas da legalidade. A carta exposta – no dia 07 de dezembro de 2015 –, pelo vice-presidente tudo causou, exceto a concretização daquela união nacional prometida durante o ato de posse presidencial.
O fato é que a Constituição não entendeu que é muito cômodo obter a vice-presidência sem travar grandes lutas e ao invés de somar esforços nos momentos críticos, declarar-se candidamente contrário ao governo graças ao qual foi eleito. Se há na vice-presidência tanta força política porque não se lançar numa candidatura própria? Mesmo com comprovada agudez de olhar, a Constituição permite que o governo origine um anti-governo? Sem demoras, a Constituição trará instrumentos para limitar a atuação da vice-presidência? Está em curso uma verdadeira parlamentarização do claudicante presidencialismo brasileiro?

João Claudio da Conceição.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Religião, Filosofia e Justiça.

Talvez aqui se ultrapasse os limites da religião? Como uma proposta tão introspectiva pode ser problematizada ao lado da filosofia e da justiça? Esta última é discutida nas aulas de direito, nos fóruns, mas aproximá-la do eixo da religião parece um delírio febril que paralisa a razão. Até quando estivermos nos preparando para ultrapassar, significa que as coisas não estão assim tão ruins. Lembremos que ultrapassar é uma das atividades preferidas da filosofia. Não se trata das ultrapassagens realizadas erroneamente nas ruas da cidade. Aqui temos uma ultrapassagem feita com a máxima segurança, pois obedece a necessária mediação do pensar.
Será que Marx estava certo? A religião é o ópio do povo? A religião é o entorpecente que anestesia classes e indivíduos e os torna presas fáceis devoradas por lobos vorazes? A religião condiciona ou emancipa? É via de alienação ou de autonomia? Constata-se que a prospectiva da religião, sua capacidade de mobilização, não se encerra nos templos sagrados. No fluir dos séculos, ideias nasceram e foram fortalecidas, algumas outras banidas, secaram e morreram a partir desta inevitável relação entre a sociedade com suas conquistas e a religião. O compor e o decompor de todas elas ecoou sobre o ser humano saciando sua sede de justiça?
A religião é um instrumento de conformação ou de transformação? Uma das analogias que desafiam a religião, a filosofia e a justiça é sem dúvida a intrigante caverna platônica. A filosofia exerce uma função de caverna? Se permanecer refém dos cursos, títulos e artigos acadêmicos sem qualquer contato com a realidade circunstante, esta filosofia tudo fez, exceto colaborar com a construção do conhecimento. A justiça também está nesta ampla roda crítica? Costumo dizer que não há porta que o direito não consiga abrir, mas este mesmo instrumento fechou muitas outras, negou tantos acessos e compactuou com visões classistas e ideológicas.
E o mesmo se diz acerca do conjunto de manifestações que marcam a religião? Não poucas vezes a religião assumiu as vestes da caverna e preferiu os corredores do poder. Quando a religião tapou os ouvidos para não ouvir o grito e silenciou diante da cruel opressão. Quando a religião rotulou fomentando preconceitos, perseguiu o inimigo, e ferindo-o o matou. Caída em tentação, a religião deixa de ser instrumento eficaz de inclusão e batiza a exclusão. Caída em tentação, a religião deixa de ser via de libertação e transforma-se numa sacra prisão.
Religião, Filosofia e Justiça exercem a valorosa função de ferramentas de resgate? Quando a filosofia ultrapassa as maquiagens culturais e recupera a capacidade de maravilhar-se diante da descoberta do novo na sutileza dos seus fragmentos que reconduzem ao todo. Quando a justiça vai além dos processos intermináveis que se arrastam por décadas sem conclusão e recupera credibilidade mostrando que a verdade nem sempre está ao lado de quem pode pagar mais. Quando a religião ultrapassa os ritualismos e se torna a casa com as portas abertas para todos sem qualquer exceção, mas com uma singular atenção ao faminto, ao estrangeiro, ao nu, ao doente e ao preso. É desta forma que Religião, Filosofia e Justiça colaboram na construção das emancipações ainda aguardadas, no fortalecimento da cidadania, contra a política de desumanização que viola este valor incomensurável que é o ser humano.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Cidadania: identidade e questionamento.

Qual a cor e o tamanho do ar que movimenta os pulmões e predispõe o ser humano para as suas atividades? Qual a cor e o tamanho da voz que expressa articulações internas transmissoras de finalidades e de controvérsias? Mesmo privo de cor, constata-se a presença do ar no amplo conjunto das expressões humanas, das mais simples até as mais complexas. Nos furacões devastadores de cidades como o Katrina que em 2005 destruiu Nova Orleans, nos EUA. No recém-nascido, acolhido e festejado pela família humana que o aguarda munida de cuidado e carinho.
Se a voz não é identificada por uma cor, esta é vista trêmula na aflição causada pelo assaltante e diante do gol feito pelo jogador, a voz se vê exultante. Assim acontece com a cidadania. Esta é lida a partir daquilo que a aniquila. Se a insuficiência respiratória é causa mortis, a falta de participação origina politicamente este fim reservado aos que não se interessaram por política e por isso geraram governantes que a manuseiam visando os interesses próprios. Não há cidadania quando se é impedido de falar e quando se é impedido de ouvir.
A cidadania germina quando vez e voz são garantidas sem obstáculo algum, considerando que a autoridade constituída deriva do povo. Não é possível pensar a cidadania como exercício reservado aos períodos eleitorais que originam os representantes. Comparada ao ar, a cidadania implica uma atividade contínua. Semelhante à voz, a cidadania inicia-se desde os primeiros sons balbuciados até a voz madura, consciente de si, dos limites impostos e das superações exigidas. Quais os caminhos percorridos pela cidadania? Como defender a vez e a voz que pertence exclusivamente ao povo? São questões que as democracias modernas precisam responder. Passadas as eleições, instaura-se um abismo entre o eleitor e o eleito. E logo se esquece de que o eleito é um servidor do povo e não de si mesmo. Quanto benefício e quanto prejuízo, o vereador pode causar ao município? E assim, o deputado estadual ao seu Estado? Os deputados federais e senadores ao inteiro país? E como a cidadania evita que tudo o que foi conquistado seja depredado?
É bom que de tanto em tanto, a democracia saia dos palácios e refresque-se nas ruas que são o seu ambiente natural. É desejável que este retorno as suas origens a torne mais madura e eficaz na concretização dos seus princípios fundamentais. Uma das tarefas basilares das democracias modernas reside na construção dos canais de inclusão. Estes por sua vez, remetem aos serviços públicos que são deveres de um Estado relapso na sua função de inclusão. Neste Brasil intrigante, serviço público e qualidade são termos diametralmente opostos. Logo nos primeiros meses de cada ano, o impostômetro acumula cifras gigantescas que não retornam ao povo através dos esperados serviços. A escola, a saúde e a segurança públicas apresentam lacunas que são respondidas com o caro auxílio do privado. As escolas particulares que florescem na cidade, os planos de saúde, as agências de segurança, provocam a vez e voz da cidadania que desperta do sono, dirige a inevitável pergunta: O que faz o Estado com o que é arrecadado?

quinta-feira, 17 de março de 2016

Karl Marx, o Direito e a Sociedade.

Uma releitura do cenário filosófico do séc. XIX levará necessariamente a um encontro com Marx, para segui-lo, contradizê-lo ou aceitá-lo apenas parcialmente. Não é possível passar pela filosofia de Marx sem ouvir suas críticas e reivindicações que exprimem a necessidade de transformações que foram teorizadas pela religião, pela política, pelo direito e por tantos outros ramos do saber, mas não foram alcançadas nas proporções esperadas. Até hoje não há um modelo de uma filosofia tão comprometida com o seu tempo como esta descrita por Marx.
Se houve uma relação intelectiva estreita entre os clássicos Platão e Aristóteles, a releitura de Marx é feita a partir da crítica contra a filosofia de Hegel, acusada de colocar o idealismo ao serviço de um Estado hábil na geração de desigualdades. Enquanto Marx desenvolvia sua proposta filosófica, o idealismo hegeliano era uma espécie de filosofia oficial do Estado, o que por si só já é algo a ser evitado. É preferível que a filosofia permaneça nômade, uma reflexão errante que não se hospeda comodamente nos corredores do poder, como outrora feito pelos sofistas, responsáveis pela elaboração das premissas que criaram as conclusões esperadas pela classe dominante.
Deste modo afirma-se que se de um lado a filosofia hegeliana visava garantir uma manutenção – e talvez tenha até deixado de ser uma filosofia propriamente dita –, de outro, a filosofia marxista buscava instaurar uma transformação, capaz de enxergar o fenômeno humano não só a partir dos conhecidos processos de abstração que separaram real/ideal, matéria/forma, mas tanto no seu conjunto, quanto no primado exercido pelas condições reais e materiais. Vê-se a crítica marxista numa das suas expressões presentes na obra, A Ideologia alemã: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.
O movimento de ideias através do qual a filosofia se expressa, evidencia temáticas compartilhadas por vários pensadores. Isto mesmo acontece na modernidade filosófica com os elementos presentes nas abordagens de Hegel e Marx. A alienação, lida como um processo interno visto só pelas câmeras da consciência perde vigor subjetivista e confronta-se com o materialismo de Marx. Portanto, além de implicar o distanciamento de si, a alienação aponta o resultado específico do capitalismo, que no ápice da expansão comercial, logo passou a vender, comprar e descartar seres humanos, agora chamados de mercadorias humanas. (MASCARO, 2014, p. 281-283)
A própria noção de uma declaração dos direitos do homem já presente na França do séc. XVIII recebe a crítica do materialismo de Marx. Das linhas da filosofia marxista ouve-se que não só este homem evidenciado não passa de uma idealização priva de impacto concreto, mas os parâmetros que delineiam o perfil de homem são os da classe dominante, do humano que explora outro humano, reduzindo-o a uma das mercadorias comercializadas em suas fábricas. Lendo-nos a partir da produção, o capitalismo reduziu-nos a mera força-trabalho impedida de obter o produto fabricado. Pacificados pelo direito, os trabalhadores assistem a expansão do capital da classe dominante e se contentam com migalhas que caem dos extenuantes processos de produção. (MASCARO, 2014, p. 293-302)
É com este enfoque de um instrumento de exploração que Marx se aproxima da questão acerca do direito. O direito é produzido pela classe dominante. Sua finalidade não é mais aquela grifada pelos clássicos: a felicidade do ser humano, entendida como o desenvolvimento das suas potencialidades. Pelo contrário, o direito é classista e enquanto tal legitima o sufocamento dos trabalhadores, arrastados pelas grossas cordas dos impostos e da antilógica do mercado. Não é tarefa do direito promover equidade, mas blindar as desigualdades que setorizam a sociedade. A partir da leitura que emerge da filosofia marxista afirma-se que o direito tudo busca, exceto uma sociedade justa.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Filosofia: O que é e onde está a Justiça?

Certa vez com alguns alunos, assistimos um documentário que trazia um episódio que marcou a região norte do país. Em 2006, no município de Óbidos, Estado do Pará, o adolescente Fabio Gualberto Pereira, de 16 anos, assassinou um membro de uma distinta família paraense. Por outros delitos cometidos, Fabio era visto como um problema naquela sociedade. Um Estado descumpridor dos deveres criou o problema Fábio. A questão é: Como solucioná-lo ou como eliminá-lo? Oito membros desta família capturaram o adolescente e o dilaceraram com tiros e facadas. O júri foi composto exclusivamente por pessoas do local que tinham suas vidas ligadas aos familiares, considerando o poderio econômico e sociopolítico que detinham. A decisão judicial absolveu os oito réus. Eis a questão: A decisão judicial foi justa? A justiça é só esta que é emitida pelos juízes ou também há algo além desta?
Vejamos o impacto da questão numa outra problematização: Em 2014, foi concedido aos juízes federais que não possuem residência nas localidades de trabalho, um auxílio moradia de quatro mil reais. No dia 08 de março de 2016, enquanto comemorávamos o dia internacional da mulher, a magistratura sergipana decidiu que as famílias abrigadas na Ponta da Asa, no bairro Santa Maria, não receberão auxílio moradia. Se colocássemos as questões nas mãos dos clássicos, diríamos: Qual das decisões provocou maior harmonia entre as classes sociais? Qual das decisões suscitou maiores equilíbrios sociais?
Houve sempre uma preocupação da parte dos filósofos clássicos para que a justiça não permanecesse circunscrita à decisão judicial. Jusnaturalistas e positivistas giram em torno desta problematização: A justiça possui uma identidade própria? É a justiça que se aproxima daqueles que a buscam? A justiça é apenas um produto cultural? A justiça se movimenta apenas numa esfera convencional? Os filósofos clássicos quiseram evitar que se equiparasse justiça e arbitrariedade. No diálogo “As Leis”, Platão aponta a função social das leis: proteger contra as manobras dos interesses pessoais. No capítulo V da Ética a Nicômaco, Aristóteles sinaliza a função social dos juízes: proteger a justiça fazendo com que gere equidade (cf. EN V, 6-7).
Na jusfilosofia medieval, Tomás de Aquino dedica um espaço aos juízes, apontados por Aristóteles como uma personificação da justiça. Cabe a eles a decisão acerca da justiça, mas não são sinônimos desta última. Os clamores populares não são a bússola dos juízes, mas sim a Constituição. Quando os responsáveis pela aplicação da justiça se pautam pelos clamores populares, é necessário averiguar se são assim tão populares e preparar-se, pois mudam com o vento. E sendo os juízes suscetíveis como os demais mortais, Tomás de Aquino os identificou como servidores das leis e não como proprietários que delas se utilizam guiados pelo bel prazer ou pelos jogos midiáticos que apresentaram o golpe de 64 com o belo eufemismo de política de Estado. Quais os valores transmitidos pelos meios de comunicação social? Eles fazem enxergar melhor ou criam miragens que distanciam a visão do todo?
No Brasil do regime ditatorial tivemos inúmeras conduções coercitivas de homens e mulheres que jamais retornaram aos seus lares. Qual era o tipo de quadro social? A filosofia, retirada agressivamente das salas de aula, teve que aguardar até o ano de 2006 para encontrar e dialogar com os jovens brasileiros. Os estudiosos e artistas que contrariaram o regime, convidados a deixar o país. Os trabalhos desencadeados pela Comissão Nacional da Verdade evidenciam que não se tratava de um país melhor (cf. Lei nº 12.528/2011). Estávamos diante de um Brasil amordaçado e torturado nos porões da impunidade. O Brasil contemporâneo vive um regime midiático? Interesses econômicos e partidários parcializam a atividade jurídica? Os canais televisivos e as revistas de circulação nacional determinam o que é, quando e por onde deve passar a justiça?

quinta-feira, 3 de março de 2016

Filosofia e Direito em prol da mulher brasileira.

As imprecisões encontradas para uma exata releitura histórica não podem fazer com que a atividade filosófica e jurídica, desvie o olhar desta abominável realidade que é a exploração da mulher. Desde os primórdios da humanidade, repousa sobre os ombros da mulher o insuportável papel de culpada. Assim, surgem vários esforços para apresentar a mulher como origem dos males presentes na sociedade. A questão é: De que culpar a mulher? Da sua competência, avidez e empreendedorismo que a faz ocupar altos cargos remunerados abaixo do esperado? Da sua feminilidade que a degenera em objeto de exploração nas suas variadas expressões, sentimental, sexual, trabalhista e doméstica?
As mulheres mortas nas fábricas europeias, asiáticas ou de quaisquer nacionalidades, recordam as mulheres indígenas e africanas, dizimadas neste chão em meados do século XVI. A reconstrução da identidade feminina brasileira suscita uma história da injustiça, que legitimou e silenciou o grito de tantas mulheres vitimadas por uma civilização opressora, que as enxergou como coisa e bem pouco como pessoa. Os filhos que os senhores da civilização geraram sem o consentimento das mulheres brasileiras, foram amamentados pela exclusão que os separou de uma gama de bens que sempre foram incomuns, enquanto distanciados do coletivo e por isso, alienados da sua finalidade social.
No êxtase da busca do Ser, a filosofia parece ter tomado distâncias da polis refugiando-se nas casas suntuosas dos senhores da civilização. Criando uma barreira entre imanência e transcendência, a filosofia pouco se ocupou deste valor filosófico, jurídico e ético que é o alter, todo e qualquer, mas, sobretudo aquele tolhido nas suas expectativas, ceifado na sua busca de justiça. O direito, mesmo diante dos esforços dos seus operadores, abriu mão da sua missão social. Aplicado para atender os interesses particulares de uma casta, de uma família desejosa de ampliar suas posses mesmo que ilicitamente, o direito nem sempre gerou equidade, mas ao contrário, maximizou fortes desigualdades que feriram gravemente a mulher brasileira.
Dez anos após a elaboração da Lei Maria da Penha notam-se os avanços e conquistas que visam proteger a mulher brasileira, educada a ser agredida, a aceitar os massacres de parentes e familiares que deveriam ser os responsáveis pela sua proteção. Só não podemos pensar que tudo está pronto. Muito foi feito e muito resta a fazer. Ao abordar este assunto fui surpreendido por um aluno: “Professor! As mulheres estão dominando. Não vê que a nossa sala está repleta de mulheres?”. Sem dúvida foi muito bom que isto tenha acontecido. Ainda estamos distantes da polis que queremos, mas já temos uma cidade menos desigual.
A mulher brasileira foi educada a relevar, a abrir mão de si mesma, a colocar-se no último lugar na esperança de que as feridas irão passar. O que seria o doce lar degenerou num espaço de horrores, mantido em sigilo por tantos motivos e até em benefício dos filhos. A mulher brasileira foi educada ao sacrifício de si mesma, pois a civilização opressora ensinou que custe o que custar: a família deve está em primeiro lugar. A filosofia e a atividade jurídica possuem uma dívida com a mulher brasileira. Coisificada, furtada na sua dignidade, a mulher brasileira encontrará ainda mais o seu lugar na sociedade através de uma educação filosófica e emancipadora que rejeita os pesos socioculturais que lhe foram impostos e ainda através dos instrumentos jurídicos que amplificam o grito de tantas mulheres educadas a não terem voz e nem vez.