Se
há uma característica predominante na reconstrução histórica das relações
sociais brasileiras, esta reside na produção da discriminação do índio e do
negro, simplesmente por não serem europeus, brancos e católicos. Por mais que
se veja no decorrer dos séculos uma aproximação dos biótipos através dos laços
sentimentais e afetivos, estas relações permanecem no aconchego do lar e
repercutem pouco sobre o tecido social, que logo deseja saber o que houve, quantos
obstáculos foram superados e o que será feito para que filhos e filhas desta
união, não sintam o peso insuportável do fardo social presente nas faces da
discriminação.
Encontra-se
numa visual social que as conquistas obtidas do século XIX aos dias atuais,
tornaram o Brasil um país que se destaca pelos passos largos dados na
construção da inclusão social. De modo que é até possível que se reveja algo no
quadro social brasileiro, mas a discriminação é uma carta que permanece
trancafiada nos porões do Brasil negreiro. Pensar o Brasil contemporâneo como
uma realidade na qual não há discriminação racial é o mesmo que acreditar que
há trabalho digno para os pais, que as crianças não passam fome e estão na
escola, que a merenda escolar não é desviada por aqueles que deveriam cuidar da
coisa pública, que os hospitais públicos funcionam com padrão FIFA, que as
mulheres não são agredidas e estupradas. É retirando a venda dos olhos que se
constata o incontestável.
A
discriminação impõe sobre o negro brasileiro os mesmos castigos que reduziram a
vida dos seus antepassados mostrando que a cidadania sempre foi um privilégio
reservado para poucos. Assim, o negro é associado a tudo aquilo que não se quer
ver, que não condiz com as boas decisões políticas, com os lugares frequentados
por uma casta seletiva, com o aprendizado educacional reservado aos filhos das
elites brasileiras conhecidas pelo labor em prol da estratificação da
desigualdade social. A mácula social se expressa de maneira tão sorrateira que
o gari negro, a prostituta negra, o presidiário negro, a faxineira negra e o
assassinado negro, são conservados nas gavetas da normalidade social, enquanto
que a universitária negra, o engenheiro negro, a advogada negra, o médico
negro, sinalizam uma anormalidade social que somente é compreendida no contato
com a fonte racial branca, naturalmente vencedora e por isso mesmo detentora
inquestionável das hegemonias sociais.
Quanto
dito aparece amplamente descrito através de uma aparelhagem midiática que
reserva ao negro os papéis condizentes com sua natureza submissa e serviçal.
Demarcados lugares e papéis, cabe ao negro lutar para ter um desempenho de
excelência que fará dele um de nós. O processo de negação do negro que marca
fortemente a sociedade brasileira não se deu só através das indizíveis
atrocidades físicas cometidas, mas atingiu o campo da consciência fazendo com
que o negro abrindo mão de si, isto é da sua identidade cultural, afirmasse a
própria existência distanciando-se de si e assumindo a cultura daquele outro que
captura e agride. Sendo assim, cabe ao negro deixar de ser-negro para ser o
outro-branco.
Deste
modo, a lei nº 12.711/12 apresenta-se como um acesso histórica e socialmente
negado, é a visibilidade daquelas e daqueles que por séculos estiveram à margem
de uma sociedade que os relegou seja por motivos econômicos, políticos,
jurídicos e até religiosos. A lei 12.711/12 é um importante instrumento de
construção da cidadania que foi retirada e que se projeta para além do
socialmente permitido. Implica a necessária abertura de espaços nos quais são
compartilhados os aspectos culturais do bem comum social. É o resultado de um
país que ensaia largos passos na direção dos que sempre foram historicamente
lesados. É a voz que acorda o gigante adormecido para conscientizá-lo deste seu
papel intransferível – esquecido por quinhentos anos –, que consiste em
promover condições iguais para todos.
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