Tomando
o território brasileiro, os portugueses transformaram tudo o que pertencia aos
indígenas numa terra de santa cruz. Cultos e divindades dos nativos caíram num
segundo plano e cederam espaço ao credo religioso dos invasores. Conhecendo a
língua indígena estes logo cuidaram para que recebessem adequada catequese de
modo que o quanto antes se preparasse um povo disposto, cristão e precisamente
se obtivesse uma nação católica, imagem e semelhança da civilização católica
presente nos séculos medievais da história.
Pouco
depois o mesmo aconteceu com a chegada dos negros no frutífero solo brasileiro.
Era preciso abrir mão da própria religião para assumir o credo religioso dos
senhores que aqui se instalaram com seus oratórios repletos de santos
festejados em várias épocas do ano. A religião marca intimamente a identidade
de um povo que possui um modo próprio de transcendência. Dia após dia, se
instalou aquela dicotomia que se chamaria de um culto público e um culto
privado. Nas suntuosas igrejas deste país, o padre – filho de uma nobre família
– presidia o culto oficial reunindo os escravocratas em busca de um consolo
para a consciência opressora. No silêncio fétido da senzala, entre um castigo e
outro, o negro encontrava tempo para transcender auxiliado por divindades
travestidas de catolicidade. Quando língua e religião são mutiladas, a
identidade de um povo é gravemente adulterada.
A
Constituição de 1824 no artigo 5º é bastante clara quando garante a
possibilidade de outros cultos religiosos desde que não atrapalhem a liturgia
hegemônica do culto católico. Assim as expressões religiosas africanas foram
conduzidas para longe dos cartões postais brasileiros que permaneciam abertos
só para as solenes manifestações religiosas oficias. O negro não apenas abdica
de sua raiz religiosa mas é obrigado a receber os sacramentos católicos, únicos
capazes de conseguir melhor destino eterno visto que este terreno foi dominado
pelas condições precárias, pela ausência dos afetos familiares e pelo
desespero. Talvez aqui está uma das maneiras de tocar a capa da catolicidade
que cobriu o teor de agressividade que originou a religiosidade brasileira com
sua maquiagem de hospitaleira. Missas, sacramentos e homilias serviram para
anestesiar o negro escravizado no Brasil. O catolicismo de então não foi um
instrumento eficaz de libertação, muito pelo contrário, visou reduzir o cheiro
insuportável da opressão que a escravidão lançou neste nosso país.
A
religiosidade africana também foi marcada como milhares de negros que tiveram
os seus corpos dilacerados pelo ferro quente designando sua pertença e
submissão ao senhor. Enquanto nas grandes catedrais deste país se cultuava um
deus temível, branco e europeu, nas periferias estava um deus desconhecido e de
segunda categoria para ouvir os negros. Este seria no mínimo um deus assaz
duvidoso e sem muito o que fazer para ouvir aqueles e aquelas que não possuíam
bens, nem grandes propriedades e nem belas vestes vistosas. Além de
despersonalizar o negro os detentores das rédeas do poder, responsáveis também
pela interpretação teológica e política da época, logo demonizaram a própria
religião afro. Se o catolicismo dominante financiado pelos latifundiários foi a
religião da conformação, a religião afro deu passos fortes tornando-se assim,
valioso instrumento de reivindicação. Com seus cantos e danças que manifestam a
alegria da vida embora sofrida e oprimida, a religiosidade afro luta pelo
direito de ser outra, totalmente livre nas suas manifestações. Sem quaisquer
entraves sociais e desimpedida, a religião afro também grita por cidadania.
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