quinta-feira, 17 de março de 2016

Karl Marx, o Direito e a Sociedade.

Uma releitura do cenário filosófico do séc. XIX levará necessariamente a um encontro com Marx, para segui-lo, contradizê-lo ou aceitá-lo apenas parcialmente. Não é possível passar pela filosofia de Marx sem ouvir suas críticas e reivindicações que exprimem a necessidade de transformações que foram teorizadas pela religião, pela política, pelo direito e por tantos outros ramos do saber, mas não foram alcançadas nas proporções esperadas. Até hoje não há um modelo de uma filosofia tão comprometida com o seu tempo como esta descrita por Marx.
Se houve uma relação intelectiva estreita entre os clássicos Platão e Aristóteles, a releitura de Marx é feita a partir da crítica contra a filosofia de Hegel, acusada de colocar o idealismo ao serviço de um Estado hábil na geração de desigualdades. Enquanto Marx desenvolvia sua proposta filosófica, o idealismo hegeliano era uma espécie de filosofia oficial do Estado, o que por si só já é algo a ser evitado. É preferível que a filosofia permaneça nômade, uma reflexão errante que não se hospeda comodamente nos corredores do poder, como outrora feito pelos sofistas, responsáveis pela elaboração das premissas que criaram as conclusões esperadas pela classe dominante.
Deste modo afirma-se que se de um lado a filosofia hegeliana visava garantir uma manutenção – e talvez tenha até deixado de ser uma filosofia propriamente dita –, de outro, a filosofia marxista buscava instaurar uma transformação, capaz de enxergar o fenômeno humano não só a partir dos conhecidos processos de abstração que separaram real/ideal, matéria/forma, mas tanto no seu conjunto, quanto no primado exercido pelas condições reais e materiais. Vê-se a crítica marxista numa das suas expressões presentes na obra, A Ideologia alemã: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.
O movimento de ideias através do qual a filosofia se expressa, evidencia temáticas compartilhadas por vários pensadores. Isto mesmo acontece na modernidade filosófica com os elementos presentes nas abordagens de Hegel e Marx. A alienação, lida como um processo interno visto só pelas câmeras da consciência perde vigor subjetivista e confronta-se com o materialismo de Marx. Portanto, além de implicar o distanciamento de si, a alienação aponta o resultado específico do capitalismo, que no ápice da expansão comercial, logo passou a vender, comprar e descartar seres humanos, agora chamados de mercadorias humanas. (MASCARO, 2014, p. 281-283)
A própria noção de uma declaração dos direitos do homem já presente na França do séc. XVIII recebe a crítica do materialismo de Marx. Das linhas da filosofia marxista ouve-se que não só este homem evidenciado não passa de uma idealização priva de impacto concreto, mas os parâmetros que delineiam o perfil de homem são os da classe dominante, do humano que explora outro humano, reduzindo-o a uma das mercadorias comercializadas em suas fábricas. Lendo-nos a partir da produção, o capitalismo reduziu-nos a mera força-trabalho impedida de obter o produto fabricado. Pacificados pelo direito, os trabalhadores assistem a expansão do capital da classe dominante e se contentam com migalhas que caem dos extenuantes processos de produção. (MASCARO, 2014, p. 293-302)
É com este enfoque de um instrumento de exploração que Marx se aproxima da questão acerca do direito. O direito é produzido pela classe dominante. Sua finalidade não é mais aquela grifada pelos clássicos: a felicidade do ser humano, entendida como o desenvolvimento das suas potencialidades. Pelo contrário, o direito é classista e enquanto tal legitima o sufocamento dos trabalhadores, arrastados pelas grossas cordas dos impostos e da antilógica do mercado. Não é tarefa do direito promover equidade, mas blindar as desigualdades que setorizam a sociedade. A partir da leitura que emerge da filosofia marxista afirma-se que o direito tudo busca, exceto uma sociedade justa.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Filosofia: O que é e onde está a Justiça?

Certa vez com alguns alunos, assistimos um documentário que trazia um episódio que marcou a região norte do país. Em 2006, no município de Óbidos, Estado do Pará, o adolescente Fabio Gualberto Pereira, de 16 anos, assassinou um membro de uma distinta família paraense. Por outros delitos cometidos, Fabio era visto como um problema naquela sociedade. Um Estado descumpridor dos deveres criou o problema Fábio. A questão é: Como solucioná-lo ou como eliminá-lo? Oito membros desta família capturaram o adolescente e o dilaceraram com tiros e facadas. O júri foi composto exclusivamente por pessoas do local que tinham suas vidas ligadas aos familiares, considerando o poderio econômico e sociopolítico que detinham. A decisão judicial absolveu os oito réus. Eis a questão: A decisão judicial foi justa? A justiça é só esta que é emitida pelos juízes ou também há algo além desta?
Vejamos o impacto da questão numa outra problematização: Em 2014, foi concedido aos juízes federais que não possuem residência nas localidades de trabalho, um auxílio moradia de quatro mil reais. No dia 08 de março de 2016, enquanto comemorávamos o dia internacional da mulher, a magistratura sergipana decidiu que as famílias abrigadas na Ponta da Asa, no bairro Santa Maria, não receberão auxílio moradia. Se colocássemos as questões nas mãos dos clássicos, diríamos: Qual das decisões provocou maior harmonia entre as classes sociais? Qual das decisões suscitou maiores equilíbrios sociais?
Houve sempre uma preocupação da parte dos filósofos clássicos para que a justiça não permanecesse circunscrita à decisão judicial. Jusnaturalistas e positivistas giram em torno desta problematização: A justiça possui uma identidade própria? É a justiça que se aproxima daqueles que a buscam? A justiça é apenas um produto cultural? A justiça se movimenta apenas numa esfera convencional? Os filósofos clássicos quiseram evitar que se equiparasse justiça e arbitrariedade. No diálogo “As Leis”, Platão aponta a função social das leis: proteger contra as manobras dos interesses pessoais. No capítulo V da Ética a Nicômaco, Aristóteles sinaliza a função social dos juízes: proteger a justiça fazendo com que gere equidade (cf. EN V, 6-7).
Na jusfilosofia medieval, Tomás de Aquino dedica um espaço aos juízes, apontados por Aristóteles como uma personificação da justiça. Cabe a eles a decisão acerca da justiça, mas não são sinônimos desta última. Os clamores populares não são a bússola dos juízes, mas sim a Constituição. Quando os responsáveis pela aplicação da justiça se pautam pelos clamores populares, é necessário averiguar se são assim tão populares e preparar-se, pois mudam com o vento. E sendo os juízes suscetíveis como os demais mortais, Tomás de Aquino os identificou como servidores das leis e não como proprietários que delas se utilizam guiados pelo bel prazer ou pelos jogos midiáticos que apresentaram o golpe de 64 com o belo eufemismo de política de Estado. Quais os valores transmitidos pelos meios de comunicação social? Eles fazem enxergar melhor ou criam miragens que distanciam a visão do todo?
No Brasil do regime ditatorial tivemos inúmeras conduções coercitivas de homens e mulheres que jamais retornaram aos seus lares. Qual era o tipo de quadro social? A filosofia, retirada agressivamente das salas de aula, teve que aguardar até o ano de 2006 para encontrar e dialogar com os jovens brasileiros. Os estudiosos e artistas que contrariaram o regime, convidados a deixar o país. Os trabalhos desencadeados pela Comissão Nacional da Verdade evidenciam que não se tratava de um país melhor (cf. Lei nº 12.528/2011). Estávamos diante de um Brasil amordaçado e torturado nos porões da impunidade. O Brasil contemporâneo vive um regime midiático? Interesses econômicos e partidários parcializam a atividade jurídica? Os canais televisivos e as revistas de circulação nacional determinam o que é, quando e por onde deve passar a justiça?

quinta-feira, 3 de março de 2016

Filosofia e Direito em prol da mulher brasileira.

As imprecisões encontradas para uma exata releitura histórica não podem fazer com que a atividade filosófica e jurídica, desvie o olhar desta abominável realidade que é a exploração da mulher. Desde os primórdios da humanidade, repousa sobre os ombros da mulher o insuportável papel de culpada. Assim, surgem vários esforços para apresentar a mulher como origem dos males presentes na sociedade. A questão é: De que culpar a mulher? Da sua competência, avidez e empreendedorismo que a faz ocupar altos cargos remunerados abaixo do esperado? Da sua feminilidade que a degenera em objeto de exploração nas suas variadas expressões, sentimental, sexual, trabalhista e doméstica?
As mulheres mortas nas fábricas europeias, asiáticas ou de quaisquer nacionalidades, recordam as mulheres indígenas e africanas, dizimadas neste chão em meados do século XVI. A reconstrução da identidade feminina brasileira suscita uma história da injustiça, que legitimou e silenciou o grito de tantas mulheres vitimadas por uma civilização opressora, que as enxergou como coisa e bem pouco como pessoa. Os filhos que os senhores da civilização geraram sem o consentimento das mulheres brasileiras, foram amamentados pela exclusão que os separou de uma gama de bens que sempre foram incomuns, enquanto distanciados do coletivo e por isso, alienados da sua finalidade social.
No êxtase da busca do Ser, a filosofia parece ter tomado distâncias da polis refugiando-se nas casas suntuosas dos senhores da civilização. Criando uma barreira entre imanência e transcendência, a filosofia pouco se ocupou deste valor filosófico, jurídico e ético que é o alter, todo e qualquer, mas, sobretudo aquele tolhido nas suas expectativas, ceifado na sua busca de justiça. O direito, mesmo diante dos esforços dos seus operadores, abriu mão da sua missão social. Aplicado para atender os interesses particulares de uma casta, de uma família desejosa de ampliar suas posses mesmo que ilicitamente, o direito nem sempre gerou equidade, mas ao contrário, maximizou fortes desigualdades que feriram gravemente a mulher brasileira.
Dez anos após a elaboração da Lei Maria da Penha notam-se os avanços e conquistas que visam proteger a mulher brasileira, educada a ser agredida, a aceitar os massacres de parentes e familiares que deveriam ser os responsáveis pela sua proteção. Só não podemos pensar que tudo está pronto. Muito foi feito e muito resta a fazer. Ao abordar este assunto fui surpreendido por um aluno: “Professor! As mulheres estão dominando. Não vê que a nossa sala está repleta de mulheres?”. Sem dúvida foi muito bom que isto tenha acontecido. Ainda estamos distantes da polis que queremos, mas já temos uma cidade menos desigual.
A mulher brasileira foi educada a relevar, a abrir mão de si mesma, a colocar-se no último lugar na esperança de que as feridas irão passar. O que seria o doce lar degenerou num espaço de horrores, mantido em sigilo por tantos motivos e até em benefício dos filhos. A mulher brasileira foi educada ao sacrifício de si mesma, pois a civilização opressora ensinou que custe o que custar: a família deve está em primeiro lugar. A filosofia e a atividade jurídica possuem uma dívida com a mulher brasileira. Coisificada, furtada na sua dignidade, a mulher brasileira encontrará ainda mais o seu lugar na sociedade através de uma educação filosófica e emancipadora que rejeita os pesos socioculturais que lhe foram impostos e ainda através dos instrumentos jurídicos que amplificam o grito de tantas mulheres educadas a não terem voz e nem vez.