domingo, 28 de dezembro de 2014

Filosofia, Cristianismo e Medievalização.



Quando nos colocamos diante de temáticas oriundas da filosofia, faz-se necessário apontar características basilares do período histórico no qual esta filosofia se desenvolve. Procuramos tocar as identidades da antiguidade, da modernidade, da contemporaneidade, para desvelar o suporte sobre o qual está construída a atividade filosófica que ocupa as nossas indagações.
O solo sobre o qual se desenvolveu a filosofia que chamamos medieval foi constituído por três elementos: as invasões barbáricas, o desmoronamento do império romano do Ocidente (476 D.C.), e o enfraquecimento da cultura greco-romana. Estes elementos conservaram grandes pontos de contato entre os períodos clássico e o medieval no tocante aos contributos de Platão, do neoplatonismo com a sua concepção acerca do Uno que origina a multiplicidade e de Aristóteles.
Como não elaboramos uma correta releitura da filosofia medieval prescindindo destes contributos também não olvidamos a influência incisiva do cristianismo nas concepções sociopolítica e filosófica deste período da história da humanidade. É a presença marcante do cristianismo que impõe sobre a filosofia medieval uma ótica espiritualista com a qual o fenômeno cultural ou se preferirmos, toda a extensão do real será relida à luz do Transcendente apresentado com as vestes do Deus dos cristãos.
Noutros termos, o antropocentrismo da filosofia moderna foi precedido pelo teocentrismo que na idade média, transformou a filosofia em laboris socia, em adiutrix theologiae isto é, em companheira de trabalho, em auxiliar da teologia. Sabemos, porém que em determinados momentos esta relação adquiriu tonalidades deterioradas ao ponto que a filosofia tornou-se verdadeira ancilla theologiae, ou seja, serva da teologia. Sem autonomias, a sua ratio essendi se limitou ao simples fato de providenciar os suportes que a teologia necessitava para explicitar as complexas realidades da fé. Esta postura gnosiológica conhecida como fideísmo, foi meticulosamente rejeitada pelo racionalismo da filosofia moderna.
Mas afinal, quais foram os erros da filosofia medieval? Os erros cometidos no decorrer desta história da filosofia, nascem deste processo de medievalização, desta excessiva cristianização que usurpou as liberdades individuais e precisamente a liberdade religiosa. Existiram acertos nesta filosofia? Se a cristianização medieval foi excessiva também foi igualmente necessária. Num forte período de crise de um modelo clássico com as suas instituições, o cristianismo ainda pueril, foi capaz de oferecer um coeficiente mínimo de integração sociopolítica imprescindível para todo e qualquer desenvolvimento cultural.
O que esta filosofia pode nos dizer hoje? Não apenas o cristianismo com a sua teologia pode impor uma dura servidão sobre os ombros da filosofia. Como sabemos esta tentativa foi retomada pelos quadros históricos sucessivos, algumas vezes pela política, pela economia, pela técnica e tantas outras. Tais aproximações são inevitáveis. Tudo resulta da manutenção dos justos equilíbrios nestas relações, salvaguardando as identidades específicas e as respectivas interdisciplinaridades.
Visto que não é possível uma releitura da filosofia medieval prescindindo da relação filosofia – cristianismo, permanece necessária a tarefa que consiste em verificar o lugar que esta mesma relação ocupa nos embates da filosofia contemporânea.

sábado, 20 de dezembro de 2014

A Filosofia e as crianças escravizadas no Brasil imperial



Passeando com as ideias, imaginamos que Filosofia e História são duas jovens obstinadas, partidárias daquela resistência que se fortalece diante de grandes dificuldades e assim não desistem de impedir que as poeiras sejam escondidas sob os luxuosos tapetes da indiferença social. O que aconteceu durante os anos sombrios da escravidão negreira? Como se comportaram o Estado e a Igreja? Estas são algumas das perguntas que estas jovens acima citadas não cessam de dirigir a si mesmas e também a nós seus contemporâneos.
Quais as realidades socioeconômicas que se beneficiaram através do fenômeno escravocrata e quais se negaram a compactuar com tamanha crueldade que marcou o físico e a dignidade de milhares de negros? O que pensavam os juristas brasileiros formados nas universidades europeias, quando com leis injustas transformaram o ventre materno na primeira senzala de gerações de negros? Quantas crianças que nasceram privas de sonhos? Desde cedo lutaram por algo que uma cultura nefasta sempre insistiu em retirar-lhes: a liberdade. A exploração de mão de obra infantil é um vício bem antigo neste querido Brasil.
Dos passos aqui realizados que refletiram acerca da horrenda questão escravocrata, é necessário ressaltar a importância do deputado cearense, Silva Guimarães que em 1850 apresentou um projeto de lei para que os filhos de negros finalmente nascessem livres. Quinze anos mais tarde, o senador Silveira da Mota defendeu projetos que previam: a proibição da venda de escravos em lugares públicos; as crianças menores de 15 anos não seriam separadas dos pais; o governo, os conventos e os estrangeiros residentes não possuiriam escravos e ainda a extinção dos inúmeros castigos físicos que pesavam sobre os negros.
A tropicalidade que nos caracteriza fez da lentidão nossa inseparável companheira em muitas questões sociopolíticas como a que engloba o fenômeno escravocrata durante os anos do Brasil imperial (1822-1889). Muitos países europeus guiados pelo progresso cultural militaram ao lado dos movimentos abolicionistas que culminaram na libertação formal dos negros. Até mesmo nos países vizinhos deste “gigante pela própria natureza” os passos a favor da abolição foram mais rápidos e incisivos. Diríamos que havia uma atmosfera internacional que provocava a consciência cultural brasileira, denunciava os abusos e os crimes humanitários e exigia soluções imediatas.
A envolvente leitura do pronunciamento realizado em 1971 por Edison Carneiro no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA), marcando o centenário da honrosa Lei do Ventre Livre mostra o compromisso de muitos intelectuais preocupados com a inserção das crianças escravizadas na complexa sociedade brasileira. Libertá-las juntamente com os seus pais era a meta visada pelos abolicionistas que se perguntavam acerca da qualidade da cidadania que os filhos escravizados exerceriam na sociedade dos escravizadores.
O que fez a filosofia e sua leitura personalista por estas crianças? Propiciou os questionamentos que enfraqueceram as ideologias que as mantiveram prisioneiras por longos anos, vitimadas por uma cor transformada em sinônimo de dor. A filosofia com o seu personalismo criticou o aparato jurídico do Brasil imperial quando este fortaleceu mecanismos que legitimaram e blindaram a história da escravidão reservando a liberdade para alguns poucos e negando-a para a grande parte da população.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A FILOSOFIA E O DOGMA CATÓLICO

Muitas vezes no vai e vem da sala de aula e mesmo em seminários realizados nas escolas de ensino superior, ouvimos a seguinte expressão: “Isto é um dogma”. Dentre as ferramentas que a constroem encontramos de um lado uma crítica velada ao catolicismo, de outro, um grave equívoco no emprego do termo. Normalmente os que o deterioram, o confundem com uma espécie de imposição, um comportamento rígido da inquestionável autoridade religiosa diante do qual os fiéis súditos devem apenas calar.
O itinerário do dogma é muito diferente. Ao acordar o pontífice não decide decretar: “O azul é vermelho”. O correto uso do dogma implica compreender que o conteúdo do mesmo chega ao pontífice conduzido pelas mãos do povo. Pode até parecer estranho aos olhos e ouvidos, mas é o que acontece com o dogma. O dogma nasce no meio do povo.
Há um conceito de fé elaborado por uma mística francesa que nos diz: “A fé é o face a face nas trevas”. Com esta expressão Elisabete da Trindade ajuda a compreender que precisamos de luzes para as difíceis travessias da caminhada humana. O dogma é uma luz irradiada num dado momento da história de um povo que se apoia sobre esta e a compartilha com os companheiros de além-mar.
O povo tem um jeito próprio de se aproximar desta luz e comunicando-a aos seus sacerdotes, inicia-se um longo e necessário trabalho para que atinja um número maior de pessoas, ou melhor, tendo sido refletida, fundamentada e meditada não será mais luz de um povo circunscrito, mas pertencerá ao corpo teórico-religioso de todo catolicismo.
Se usássemos uma terminologia técnica diríamos que o dogma parte do sensus fidei que indica o sentido da fé vivo na alma e no coração de um povo. Sentimento e racionalidade ou se preferirmos, sentimento e teorização se fundem na composição do papel do dogma no catolicismo: longe de inibir e sufocar o dogma tem a função de tutelar e guiar.
A filosofia não é contrária ao dogma utilizado pelo catolicismo, pois este resulta do diálogo, do contato direto com uma cultura local que será revestida de caráter universal e norteará o ethos religioso de toda expressão da fé católica. Separa-se a filosofia daquele tipo de dogma que se reveste de ideologias econômicas, políticas, educativas, religiosas, científicas e outras que privas de fundamento apoiam-se sobre manobras perniciosas que fortalecem a hegemonia de interesses particulares sobre as reais necessidades do todo, ou melhor, do autêntico sentido religioso.
Enquanto o dogma social nasce quase sempre de um princípio ideológico, o dogma católico deriva de um percurso filosófico. Dentre os vários hobbies responsáveis pela sua boa forma, a filosofia se alegra ao percorrer as suntuosas e as desprovidas ruas de uma cultura, indagando os elementos encontrados e questionando-se acerca da origem destes mesmos.
A filosofia e o dogma católico compartilham este hobby salutar. Dialogando com as características basilares do senso comum de uma cultura, preparam-se para trabalhá-las e aperfeiçoá-las de modo que devidamente integradas, residam de modo harmônico no fenômeno humano, essencialmente crítico, cultural e religioso.


sábado, 6 de dezembro de 2014

A filosofia tem um nome?



Quando estamos diante de uma pessoa brilhante que se destaca pela eficácia da sua reflexão, traduzimos este momento com a seguinte afirmação: “Esta pessoa está acima da média”. É assim com a literatura e com a poesia que classificam autores privilegiando uns em detrimento de outros e mesmo a pintura seleciona quadros valiosíssimos que dificilmente decorarão as paredes das casas de pobres mortais.
Os filósofos também estão inseridos nesta dinâmica. Existem autores que não passam despercebidos pelos caminhos do saber. São autores que incomodam, fazem barulho e acordam a filosofia quando aqui e acolá prefere cochilar e desiste da tarefa que consiste no pensar.
Costumo dizer que tais autores trazem um nome para a filosofia. É por isso que a filosofia platônica recebe o nome de idealismo, priorizando o ideal em relação ao real. A filosofia aristotélica é conhecida com o nome de realismo, pois resgata o valor do real como ponto de partida da indagação filosófica. Durante os séculos medievais, a filosofia e o cristianismo se aliaram e originaram a filosofia cristã.
O valioso trabalho começado por Descartes durante o séc. XVI foi determinante para os passos da filosofia. O projeto do filósofo francês maximiza a potencialidade da razão atribuindo-lhe a responsabilidade de ser o pai da modernidade filosófica chamada de racionalista. Se a história presenciou evoluções e involuções culturais durante e após o século das luzes, este resultado deriva dos esforços de Descartes. O iluminismo do séc. XVIII é filho legítimo do racionalismo que identificou a filosofia com a morte da metafísica, perdendo interesse pela busca de algo válido por si mesmo, cancelando a noção de imutável, absoluto e imaterial e erguendo as bandeiras do mutável, relativo e material.
No séc. XIX a filosofia teve um encontro importante com Karl Marx e ficou conhecida como materialismo. Quando Marx iniciou a sua reflexão o modo hegemônico de filosofar se identificava com o sistema hegeliano que em sede moderna desenvolve alguns aspectos da perspectiva platônica.
Se verificássemos a obra “Fenomenologia do espírito”, veríamos o interesse de Hegel pelas noções de ideia, eu, consciência de si, espírito absoluto e outras sempre marcadas por um forte idealismo. Como Aristóteles refuta Platão, Marx rejeita Hegel. As preocupações da filosofia marxista ou do materialismo filosófico são diferentes. Talvez com Marx pela primeira vez, vimos uma filosofia que visa transformar as relações que pesam sobre os trabalhadores que nas Barretopolis aceitam livremente que seus salários sejam parcelados em prol do bom funcionamento do Estado.
Em diferentes épocas, diante de variadas circunstâncias a filosofia recebeu muitos outros nomes que aqui não citaremos. Grandes e urgentes necessidades exigiram que a filosofia se pronunciasse, expondo a sua posição e esclarecendo situações obscuras. Como o gado é marcado para ser reconhecido e tratado a filosofia recebeu as marcas de um tempo que permitem reconhecê-la emergindo do chão de cada história. O que muda na filosofia é apenas o seu rosto. A sua identidade permanece inalterada. Através de comportamentos diferentes a filosofia não abre mão do seu real interesse: auxiliar na tarefa de construção do conhecimento.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A filosofia diante do fenômeno escravocrata no Brasil colonial



Sabemos que Terra de Santa Cruz, foi um dos primeiros nomes dados pelos portugueses ao nosso querido Brasil. De fato não há um nome mais apropriado. Ao longo da história da humanidade a Cruz sempre foi sinônimo de represália, de perseguição e dizimação. Isto aconteceu inicialmente com os índios e em seguida com os negros arrancados dos seus lares para o trabalho escravo que enriqueceu a primeira nobreza brasileira a partir do século XVI.
Permitam-me a grosseria da analogia, mas como hoje o camaro amarelo é apresentado como objeto de ostentação, no Brasil colonial o negro escravo desempenhou esta função. Da mesma forma que corremos atrás do último aparelho celular, os senhores nobres visavam sempre um número maior de negros escravos. Quanto mais escravos, maior o trabalho braçal gratuito à disposição nas enormes fazendas que legitimaram as desigualdades sociais ou se preferirmos, maior a concentração de renda nas mãos de poucos contemplados pela ascensão sociopolítica.
Não sei se enfatizamos o bastante este aspecto da história do país do carnaval e do futebol, mas repensar os primeiros passos do Brasil é identificá-lo com uma história marcada pela extrema violência contra os negros rebeldes que não aceitavam passivamente o jugo da escravidão. Na interminável luta em busca da liberdade, os negros escravizados desenvolveram aquilo que hoje chamaríamos de hora-extra. Nos poucos momentos de pausa os negros reivindicavam pequenos espaços de terra nas imensas fazendas dos senhores com a intenção de cultivar algo de próprio, vendê-lo por um preço muito abaixo do mercado para no decorrer de anos terem a possibilidade de comprar a própria liberdade.
No Brasil colonial a liberdade não era um direito inalienável, pertencente de forma intrínseca ao homem e a mulher pelo fato de serem humanos. A liberdade talvez como hoje, era um luxo reservado a poucos. Durante a leitura de um belíssimo trabalho realizado pela UFBA (Sharyse Amaral), encontrei um relato atribuído aos negros escravizados na senzala de Santana de Ilhéus. Trata-se da apresentação de um pacto entre senhores e escravos no qual estes apresentam as condições para cessar as agressões que atingiam feitores, senhores e respectivos familiares.
Em síntese, os negros queriam usufruir do próprio trabalho, chamá-lo de meu e neste encontrar condições para o desenvolvimento das próprias habilidades. Dentre os itens que despertam atenção neste relato, ressaltaria a data de elaboração que é repleta de significado para a Europa e para o mundo. Em 1789, enquanto o velho continente respirava os ares da Revolução francesa, aqui torturávamos pessoas pelo fato de terem outra cor. Enquanto a Europa assistia a queda da monarquia, a ascensão da democracia, a discussão acerca da separação dos poderes iniciada por Montesquieu no século XVII, aqui desapropriávamos pessoas dos seus direitos fundamentais, tornando-nos um dos berços históricos do ódio racial.
Onde estava e o que fazia a filosofia enquanto os negros eram escravizados na Terra de Santa Cruz? O que tínhamos de filosófico procedia de Portugal. Num país acostumado a considerar o saber como privilégio de poucos, a filosofia foi trazida pelos jesuítas leitores de Tomás de Aquino, que preocupados com a fiel apresentação do frade dominicano aos filhos dos nobres senhores, talvez esqueceram de encontrar nesta construção filosófica os instrumentos necessários para a construção dos alicerces da libertação.