Sabemos que Terra de
Santa Cruz, foi um dos primeiros nomes dados pelos portugueses ao nosso querido
Brasil. De fato não há um nome mais apropriado. Ao longo da história da
humanidade a Cruz sempre foi sinônimo de represália, de perseguição e
dizimação. Isto aconteceu inicialmente com os índios e em seguida com os negros
arrancados dos seus lares para o trabalho escravo que enriqueceu a primeira
nobreza brasileira a partir do século XVI.
Permitam-me a grosseria
da analogia, mas como hoje o camaro amarelo é apresentado como objeto de
ostentação, no Brasil colonial o negro escravo desempenhou esta função. Da
mesma forma que corremos atrás do último aparelho celular, os senhores nobres
visavam sempre um número maior de negros escravos. Quanto mais escravos, maior
o trabalho braçal gratuito à disposição nas enormes fazendas que legitimaram as
desigualdades sociais ou se preferirmos, maior a concentração de renda nas mãos
de poucos contemplados pela ascensão sociopolítica.
Não sei se enfatizamos
o bastante este aspecto da história do país do carnaval e do futebol, mas
repensar os primeiros passos do Brasil é identificá-lo com uma história marcada
pela extrema violência contra os negros rebeldes que não aceitavam passivamente
o jugo da escravidão. Na interminável luta em busca da liberdade, os negros
escravizados desenvolveram aquilo que hoje chamaríamos de hora-extra. Nos
poucos momentos de pausa os negros reivindicavam pequenos espaços de terra nas
imensas fazendas dos senhores com a intenção de cultivar algo de próprio,
vendê-lo por um preço muito abaixo do mercado para no decorrer de anos terem a
possibilidade de comprar a própria liberdade.
No Brasil colonial a
liberdade não era um direito inalienável, pertencente de forma intrínseca ao
homem e a mulher pelo fato de serem humanos. A liberdade talvez como hoje, era
um luxo reservado a poucos. Durante a leitura de um belíssimo trabalho
realizado pela UFBA (Sharyse Amaral), encontrei um relato atribuído aos negros
escravizados na senzala de Santana de Ilhéus. Trata-se da apresentação de um
pacto entre senhores e escravos no qual estes apresentam as condições para
cessar as agressões que atingiam feitores, senhores e respectivos familiares.
Em síntese, os negros
queriam usufruir do próprio trabalho, chamá-lo de meu e neste encontrar
condições para o desenvolvimento das próprias habilidades. Dentre os itens que
despertam atenção neste relato, ressaltaria a data de elaboração que é repleta
de significado para a Europa e para o mundo. Em 1789, enquanto o velho
continente respirava os ares da Revolução francesa, aqui torturávamos pessoas
pelo fato de terem outra cor. Enquanto a Europa assistia a queda da monarquia,
a ascensão da democracia, a discussão acerca da separação dos poderes iniciada
por Montesquieu no século XVII, aqui desapropriávamos pessoas dos seus direitos
fundamentais, tornando-nos um dos berços históricos do ódio racial.
Onde estava e o que
fazia a filosofia enquanto os negros eram escravizados na Terra de Santa Cruz? O
que tínhamos de filosófico procedia de Portugal. Num país acostumado a
considerar o saber como privilégio de poucos, a filosofia foi trazida pelos
jesuítas leitores de Tomás de Aquino, que preocupados com a fiel apresentação
do frade dominicano aos filhos dos nobres senhores, talvez esqueceram de
encontrar nesta construção filosófica os instrumentos necessários para a
construção dos alicerces da libertação.
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