Talvez
aqui se ultrapasse os limites da religião? Como uma proposta tão introspectiva
pode ser problematizada ao lado da filosofia e da justiça? Esta última é
discutida nas aulas de direito, nos fóruns, mas aproximá-la do eixo da religião
parece um delírio febril que paralisa a razão. Até quando estivermos nos
preparando para ultrapassar, significa que as coisas não estão assim tão ruins.
Lembremos que ultrapassar é uma das atividades preferidas da filosofia. Não se
trata das ultrapassagens realizadas erroneamente nas ruas da cidade. Aqui temos
uma ultrapassagem feita com a máxima segurança, pois obedece a necessária
mediação do pensar.
Será
que Marx estava certo? A religião é o ópio do povo? A religião é o entorpecente
que anestesia classes e indivíduos e os torna presas fáceis devoradas por lobos
vorazes? A religião condiciona ou emancipa? É via de alienação ou de autonomia?
Constata-se que a prospectiva da religião, sua capacidade de mobilização, não
se encerra nos templos sagrados. No fluir dos séculos, ideias nasceram e foram
fortalecidas, algumas outras banidas, secaram e morreram a partir desta
inevitável relação entre a sociedade com suas conquistas e a religião. O compor
e o decompor de todas elas ecoou sobre o ser humano saciando sua sede de
justiça?
A
religião é um instrumento de conformação ou de transformação? Uma das analogias
que desafiam a religião, a filosofia e a justiça é sem dúvida a intrigante
caverna platônica. A filosofia exerce uma função de caverna? Se permanecer
refém dos cursos, títulos e artigos acadêmicos sem qualquer contato com a
realidade circunstante, esta filosofia tudo fez, exceto colaborar com a
construção do conhecimento. A justiça também está nesta ampla roda crítica?
Costumo dizer que não há porta que o direito não consiga abrir, mas este mesmo
instrumento fechou muitas outras, negou tantos acessos e compactuou com visões
classistas e ideológicas.
E
o mesmo se diz acerca do conjunto de manifestações que marcam a religião? Não
poucas vezes a religião assumiu as vestes da caverna e preferiu os corredores
do poder. Quando a religião tapou os ouvidos para não ouvir o grito e silenciou
diante da cruel opressão. Quando a religião rotulou fomentando preconceitos,
perseguiu o inimigo, e ferindo-o o matou. Caída em tentação, a religião deixa
de ser instrumento eficaz de inclusão e batiza a exclusão. Caída em tentação, a
religião deixa de ser via de libertação e transforma-se numa sacra prisão.
Religião,
Filosofia e Justiça exercem a valorosa função de ferramentas de resgate? Quando
a filosofia ultrapassa as maquiagens culturais e recupera a capacidade de
maravilhar-se diante da descoberta do novo na sutileza dos seus fragmentos que
reconduzem ao todo. Quando a justiça vai além dos processos intermináveis que
se arrastam por décadas sem conclusão e recupera credibilidade mostrando que a
verdade nem sempre está ao lado de quem pode pagar mais. Quando a religião ultrapassa
os ritualismos e se torna a casa com as portas abertas para todos sem qualquer
exceção, mas com uma singular atenção ao faminto, ao estrangeiro, ao nu, ao
doente e ao preso. É desta forma que Religião, Filosofia e Justiça colaboram na
construção das emancipações ainda aguardadas, no fortalecimento da cidadania,
contra a política de desumanização que viola este valor incomensurável que é o ser
humano.
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