A
árdua tarefa que consiste em criar as necessárias adaptações sociais nem sempre
foi exercida pelo direito. Antes mesmo de vê-lo percorrendo com sã autonomia as
estradas da história humana, esse papel foi desempenhado pela religião,
indispensável para conter as fúrias dos deuses, responsáveis diretos por todos
os sucessos e insucessos da humanidade. Com o fortalecimento do monoteísmo e o
sucessivo advento do cristianismo, esta função anteriormente compartilhada com
a inteira assembleia dos deuses, agora pertence somente ao Deus que se
apresenta sem reservas através da instigante mensagem de Cristo.
Retomando
alguns aspectos do livro do Gênesis, desponta a narração do fratricídio
cometido por Caim. A terra banhada pelo sangue de Abel enfatiza como desde cedo
religião e violência se contrastam. Emerge destas linhas bíblicas a identidade
de um Deus que se preocupa com a morte dos seus e, portanto exige justiça.
Assim a morte de Abel não passa despercebida e as mãos da impunidade não
conseguem sufocá-la. É preciso punir Caim? Que tipo de punição o aguarda? Uma
vez julgado, Caim terá que vagar numa terra com a qual não possui mais
quaisquer laços de amizade e enfrentará as severas hostilidades.
Contudo,
Caim é marcado por Deus e mesmo tendo cometido um crime bárbaro, permanece
protegido, tutelado por garantias que enfatizam o indiscutível princípio da
dignidade da pessoa humana. Nesta leitura do fenômeno jurídico não há espaço
para compensar o ceifar de uma vida retirando outra. Esta justiça não se
expressa através dos mecanismos da vingança e não se deleita em punir pelo
simples prazer da punição. O ato de punir tem finalidades muito específicas,
pois distancia para reaproximar, para reinserir com uma maior consciência do
seu valioso papel na construção harmônica da convivência social.
A
decisão tomada por Deus nas linhas do livro do Gênesis não é expressão de um
conformismo com o terrível teatro da violência. Aqui surge o perfil de um Deus
entristecido, mas que ao mesmo tempo não cessa de olhar as expressões humanas
com uma inesgotável esperança na sua capacidade de mudança, quando são dados
instrumentos indispensáveis para tal façanha que implica uma inclusão
transformadora. Seguindo uma abordagem religiosa, Deus prevê que esta inclusão
se dê através da sua Palavra, fonte de toda lei justa e eficaz. Numa leitura
política, cabe ao Estado fornecer os elementos necessários como, a saúde, a
educação e o trabalho, de modo que este retorno ao contexto social seja
devidamente preparado. Os organismos responsáveis pelo progresso cultural não
podem permitir o surgimento de novos processos de animalização da pena, que
feririam gravemente o direito e os distanciariam das suas reais finalidades.
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