quinta-feira, 23 de outubro de 2014

As faces do “eu” na filosofia moderna: Descartes, Kant e Fichte.



Dentre os interesses compartilhados pela filosofia moderna com as ciências, destaca-se a reflexão sobre a intrigante noção que consiste no eu. O projeto filosófico de Descartes, conhecido como dúvida metódica a absolve como centro do seu racionalismo. Nada pode escapar ao ímpeto furioso da razão moderna. O seu caráter demolidor atinge tudo e todos, exceto o eu que colocando em cheque a aparente estabilidade das coisas existentes, certifica a realidade da própria existência. Se há um existencialismo que emerge de Descartes, se trata de um existencialismo racionalista, como sintetizado na expressão: Penso, logo existo.
Não foi assim tão diferente a posição de Kant acerca do eu. Na sutileza da sua sistematicidade, o filósofo de Königsberg evidencia o papel do intelecto que emite juízos sintéticos, ou seja, que não se dão por satisfeitos com a mera descrição do objeto, mas os revestem de significados e valores, que descortinam novos âmbitos no processo de construção do conhecimento. Em Kant, o eu se apresenta como fundamento sobre o qual o intelecto exerce a função de adjetivar, atribuir e sintetizar.
Com a interpretação de Fichte, nos afastamos do equilíbrio estabelecido por Kant entre sujeito/objeto e nos aproximamos da maximização do eu. Como Descartes, Fichte transformou o eu numa esfera hiperbólica. Tendo sido absolutizado, o eu não admite conotações precedentes. O fantástico eu dispensa justificativas e explicita a si próprio.
Além de constituir o primeiro princípio de Fichte, esta autoafirmação carrega consigo a negação de si. Quando indaga a realidade circunstante, a maior das expressões que encontramos nos lábios do eu é a que a condecora com o título de não eu. Perpassando o itinerário de Fichte, esta negação que compreende todo o segundo princípio, não instaura um abismo intransponível, que torna interminável o valioso conflito entre eu e não eu. No terceiro princípio postulado por Fichte autoafirmação e negação se reapresentam com as vestes da delimitação, a partir da qual eu e não eu se re - identificam.
Somente superando os desafios apresentados pelo não eu, é que o eu se depara com a plena intuição de si e constata a veracidade da própria existência. Através do não eu, é que o eu realiza o esforço vital que consiste em permanecer em si mesmo. Para concretizar o ideal de liberdade, o eu está sempre escapando das férreas garras do não eu.
Assim descrito pela filosofia moderna, o eu acentua uma concepção imanente de Deus. Despido de transcendência, o Deus da modernidade filosófica, não só reside nas relações instauradas entre eu e não eu, mas com estas mesmas é plenamente identificado.

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