Os
textos clássicos de autores memoráveis quais Platão, Aristóteles e outros que
dialogaram com a filosofia e a justiça, acertam as contas com o teor realístico
apresentado por Sófocles nas tortuosas linhas de Antígona. Dramas, prantos e
tensões são alguns dos ingredientes que formam as variáveis receitas de
justiça. Quantas vezes perguntamos acerca da injustiça provocada pela lei? O
texto positivo parece deixar lacunas vazias. Permanece um sentimento de justiça
que não foi devidamente preenchido. A utopia de uma justiça perfeita se esvai e
cede lugar a uma justiça possível. Experimenta-se que lei e justiça não são
necessariamente sinônimos. A justiça que está no texto da lei evoca anseios de
justiça que o precedem e o superam. Há uma hermenêutica natural que oxigena o
texto legal para mantê-lo vivo e atual.
O
que seria a ciência despida das fantasias nutridas sob o firmamento das
incertezas? O fenômeno jurídico se alimenta de sonhos. Antígona desejava
somente sepultar o irmão. O que há de errado com este desejo de honrar os
próprios caros? A lei emanada por Creonte a proibia. Acusado de trair a cidade,
este jovem morto (Polinice) deveria
ser devorado pelos abutres para servir de lição aos concidadãos. Como reagir
diante desta lei de Creonte? Cabe aceitá-la ou transformá-la? Ismene, irmã de
Antígona, não apenas aceitou piamente a proibição da lei, como não mediu
esforços para convencer Antígona a desistir deste propósito. Qual o papel
desempenhado por Ismene? A cidadã obediente às leis do seu tempo? A falha
hermenêutica de enxergar além do texto positivado e encontrar elementos capazes
de melhorá-lo? Sobre a reflexão, atividade preferida da filosofia, Ismene impôs
a dura pedra sepulcral na qual permanece escrito até estes dias: “Não convém nem começar a buscar o
impossível”. (Antígona, 90)
Derivada
de uma sã hermenêutica, a lei cumpre a função social de aproximar aquilo que
estava distante. Atrelada ao ideológico, a lei distancia aquilo que estava
próximo. Na descrição de Sófocles, Creonte é apresentado como alguém obstinado.
Incapaz de ver-se auxiliado até pelos colaboradores mais próximos nas decisões
que regem os rumos da cidade. Estes sabem que fazem algo errado, mas sequer
ousam desobedecer quanto legalizado. Sabem que a lei de Creonte usurpa um
direito naturalmente dado. Aquilo que esperam permanece gravado nas palavras do
guarda que aprisiona Antígona: “Senti-me
alegre e triste ao mesmo tempo. Escapar a dificuldades é bem agradável, mas
lançar pessoas na desgraça é doloroso. Enfim, nada é mais importante que minha
reabilitação”. (Antígona, 435)
O
apelo feito por Antígona remete a existência de leis não escritas que orientam
o trabalho daqueles que legislam e evitam o surgimento sutil de novas tiranias.
(Antígona, 455) Interrogada pelo implacável Creonte, Antígona sintetiza a
vocação humana comum que é escopo dos respectivos trabalhos científicos: “Não fui gerada para odiar, mas para amar”.
(Antígona, 520) Esta é mesmo a meta da ciência? Impomos sobre o drama de
Sófocles um romantismo que subtrai as repercussões sociais? Lendo quanto dito
por Antígona à luz das noções “amar” e “cuidar”, tocamos as raízes sociais da
ciência. A arquitetura e a engenharia civil cuidam da beleza e da segurança das
construções feitas na cidade. A engenharia ambiental cuida para que tais
construções não violentem o meio ambiente. A filosofia cuida da reflexão. A lei
cuida das adaptações necessárias para a boa convivência social. Quando
descuida, a lei perde sua razão de ser e a consequente utilidade para o
bem-estar da sociedade. Longe de propiciar os equilíbrios esperados, a lei de
Creonte gera desequilíbrios insanáveis que não atingem apenas Antígona, mas também
os segmentos da cidade representados pelos personagens do relato de Sófocles.
Pensar a lei a partir
de Creonte implica privá-la do diálogo com as várias partes que formam o espaço
social no qual será aplicada. Uma lei surda não responderá às reais
necessidades da sociedade. A lei de Creonte não é a soma de vozes que humanizam
o convívio social, pois aprisiona os que ao lado de Antígona lutam em busca de
justiça. Creonte tornou a cidade vítima de suas próprias leis. Antígona
compartilha com a filosofia a inquietante atitude de interrogar e ampliar as decisões
da justiça.