domingo, 23 de novembro de 2014

A Filosofia é Negra

As expressões utilizadas neste grande palco chamado cotidiano escondem vários significados. Quando percebemos que temos uma exata compreensão dos fatos, exclamamos: “Tudo está claro”. E quando os fatos não são facilmente decifráveis, afirmamos: “A coisa está preta”.
Se levássemos expressões tão comuns para o universo específico da filosofia, diríamos que a filosofia não tem a mínima pretensão de ser clara. A filosofia foge de uma clareza que normalmente é sinônimo de conformismo, de uma aceitação ingênua e acrítica de padrões culturais impostos pelos detentores do saber, que ditam o que, como, quando e porque devemos conhecer os objetos expostos sobre as atuais prateleiras culturais. Esta clareza é verdadeira escuridão.
Penso que a filosofia tem um bronzeamento natural, pois está sempre exposta ao tórrido calor da história com os seus altos e baixos, evoluções e involuções. A cor mais apropriada para a filosofia é a preta e se a personalizássemos, diríamos que a filosofia é negra, enquanto sinônimo de oposição e resistência, crítica e luta contra os algozes que democraticamente engendram processos sorrateiros de novas escravidões que violentam brancos, negros e estrangeiros trancafiados nas senzalas urbanas da atual sociedade. A alma negra da filosofia não aceita aquilo que apontam como claro, mas pelo contrário se apresenta como construtora de clareza.
O que aconteceu no Brasil com os negros vai muito além dos açoites, das atrocidades e castigos físicos. Os negros foram lesados nos seus direitos fundamentais, vítimas de um aparato jurídico que sequer os considerava pessoas. Os negros eram coisas e como tais, vendidos, trocados e traficados.
O Brasil contemporâneo tem uma grande dívida com os negros, que jamais será quitada inteiramente. As políticas de inclusão social não são um favor, mas a obrigação moral e política de um país que lesou os negros de moradia, saúde e educação, que os distanciou das sonhadas condições iguais para todos e os escondeu debaixo dos tapetes sociais de uma burguesia que sempre considerou mais que natural uma hegemonia dos dominantes sobre o sofrimento dos dominados.
Certa vez, conversando sobre filosofia com os alunos numa faculdade da capital sergipana, utilizei uma metáfora escravocrata para explicitar a identidade da filosofia. Os negros foram destruídos psicologicamente, privados dos seus afetos, furtados dos seus sonhos. Após os variados tormentos causados pela escravidão, os negros enfim foram presenteados com a esperada libertação.
O que farão após anos e anos trancafiados numa senzala? O que farão as negras exploradas sexualmente, violentadas pelos senhores de engenho? Para onde irão aqueles que quando muito eram admitidos na cozinha para comer as sobras dos patrões?
Assim concebo a filosofia. Ela quer mesmo libertar. E até pode fazê-lo, mas jamais dirá para onde ir. A filosofia dará os instrumentos necessários para o percurso que faremos, mas não privará da possibilidade de errar. E o que ensinará? A garimpar enormes quantidades de erros, na esperança de encontrar estas valiosas pedras que receberam dos séculos o nome de verdade e liberdade.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O Jesus do Evangelho

Com exceção do relato acerca das tentações sofridas durante os longos dias no deserto, o Evangelho nunca nos apresenta Jesus como um místico, como um homem que vive exclusivamente absolvido pela contemplação de uma realidade transcendente. O Jesus do Evangelho não é um padre no sentido estreito do termo, não está preocupado com a prosperidade do feudo, como testemunham as páginas escritas e não escritas da história. O Jesus do Evangelho não é um bispo que desvirtua a ação litúrgica do seu teor celebrativo, reduzindo-a a um mero desfile de moda medieval.
Dirigindo-se aos bispos do Conselho Episcopal latino-americano, reunidos na cidade do Rio de Janeiro (28 de julho de 2013), o Papa Francisco pediu aos bispos que não tenham uma psicologia de príncipes, que dominam sobre os vassalos, mas ao contrário, sejam amantes da pobreza, pastores pacientes e misericordiosos.
Facilmente nos comovemos diante da pobreza, mas qual é o estilo de vida dos atuais seguidores de Jesus? Ainda recordamos que o então cardeal Bergoglio percorria as ruas da capital argentina utilizando o transporte público? Recordamos que o Papa Francisco pediu aos padres e religiosos que usem carros modestos, que sirvam ao pastoreio e não aos orgulhos da moda automobilística? Ainda hoje existem padres que nas paróquias entendem que a primeira e fundamental ação pastoral consiste na fatídica troca do carro. Certa vez, conversando com uma amiga advogada no corredor de uma faculdade da capital sergipana, ouvi palavras que apenas a sabedoria feminina seria capaz de expressá-las com tamanha beleza: “O Papa Francisco fará com que os católicos sejam mais evangélicos”.
É preciso dizer outra coisa: O Jesus do Evangelho não é um destes senhores que se autointitulam bispos e pastores. Como se tornaram bispos fora da sucessão apostólica? Onde está a historicidade tão exigida em outros âmbitos da reflexão acerca da religião? Muitos destes senhores traíram a Boa Nova trazida por Jesus e transformaram a religião num dos negócios mais rentáveis deste tempo.
Mesmo considerados pastores, constatamos todos os dias e, sobretudo no período eleitoral, que apascentam apenas a si mesmos. Nunca vimos tantos pastores dentre os vereadores do país. Estes pastores exercem mandatos como deputados estaduais, federais, prefeitos, ocupam o senado e até marcam presença nas falcatruas antipolíticas da nação. A quem estão pastoreando? A quem estão apascentando? Estes pastores transformaram as igrejas em verdadeiros currais eleitorais.
O Jesus do Evangelho não aceita esta pseudoteologia da prosperidade que está sendo apregoada por aí afora. Qual foi a exclamação de Zaqueu diante de Jesus? Jesus aumente dez vezes os meus bens? Foi totalmente outra: Senhor, eis que eu dou aos pobres metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, o restituo quadruplicado. (Lucas 19,8) Parece uma postura diferente?
O Jesus do Evangelho é um homem sensível e dedicado, capaz de suportar o peso do trabalho tendo José ao seu lado. O Jesus do Evangelho é atento e mesmo circundado pela multidão pergunta aos seus seguidores: “Quem é que me tocou?” Jesus acolheu a todos, mas de modo especial acolheu esta mulher enferma e explorada que gastou todos os seus bens em vão com os médicos da época (Lucas 8, 43-48).
O Jesus do Evangelho ama a todos, mas tem uma opção preferencial pelos fracos, os últimos, os humilhados, pelos que foram privados de voz. E as religiões que o invocam serão autênticas na medida em que assim o seguirem. As palavras do bispo dom Claudio Hummes dirigidas ao então cardeal Bergoglio ressoam nas páginas recentes da Igreja Católica: “Não se esqueça dos pobres” (13 de março de 2013). Este homem tornou-se o amado Papa Francisco, que deseja uma igreja pobre e para os pobres.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Rousseau, o Estado e os magistrados.




Nestes dias estava lendo algo sobre Rousseau (1712), este grande pensador genebrino que por vezes é compreendido de forma equivocada. Normalmente adocicamos muito Rousseau e o tornamos numa espécie de algodão doce da filosofia moderna, esquecendo que nele encontramos críticas sutis dirigidas a este mal necessário que é o Estado. Rousseau é o autor de obras memoráveis como Do Contrato social (1762), O Emílio ou Da educação (1762) e o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), e todas estas obras despertam atenção quanto ao modo de compreender as chamadas relações sociais.
Rousseau é um daqueles autores que como Hobbes (1588), chamamos de contratualistas. São aqueles pensadores que visam explicar a sociedade com as suas variações, a partir da noção de contrato. Tais filósofos estão apoiados sobre algumas noções basilares como, por exemplo, o estado de natureza e a sociedade civil. Entre os autores citados podemos estabelecer uma diferença fundamental. Se de um lado Hobbes enxerga com bons olhos a sociedade civil, Rousseau nutre críticas dirigidas a este inevitável conjunto de relações que formamos e que somos.
Se retirássemos das páginas de Rousseau elementos para a construção de um conceito de Estado, escreveríamos com letras garrafais: O Estado é a legitimação das desigualdades sociais. Nesta escola dos contratualistas, Rousseau não retoma a linguagem apocalíptica utilizada por Hobbes para descrever o Estado, mas com precisão alerta quanto aos verdadeiros fins do Estado que estão distantes das noções de segurança e harmonia sociais acentuadas pelos defensores do idealismo político. Rousseau está dizendo bem o contrário: “Cuidado! O Estado está aqui. Ele vai pegar você”.
É isto que o Estado faz conosco, nos pega, ou melhor, nos retira de um hipotético estado de natureza e nos catapulta para o fantástico mundo da sociedade civil. E a violência traumatizante desta trajetória traz como consequência a perda de nós mesmos, da nossa identidade fundamental. Somos agressivamente despidos das vestes do bom selvagem e passamos a representar um papel social.
A sociedade civil consiste numa refinada tecnologia da agressão, que impõe sobre nós os pesos da propriedade e da reputação de tal forma que não vivemos centrados em nós, mas nos externamos, vivemos fora de nós, deixamos de residir em nós, para morar nas mansões luxuosas ou sob as pontes propostas nas partes deste tremendo teatro social.
O Estado está sempre maquinando como legitimar a velha dialética senhor-escravo, como favorecer a hegemonia do rico em detrimento do pobre. E para agir sorrateiramente o Estado monta o aparato adequado para maquiar com as cores da democracia as mais arraigadas tiranias. Dentre as peças luxuosas deste imenso aparato, Rousseau acentua a presença dos magistrados. Pessoas importantes na difícil tarefa de propiciar controle no corpo social, mas todo cuidado é pouco com estes nobres senhores.
Na sociedade civil, exercem o poder de dizer o que é direito e o que é de direito. Possuem cartas nas mangas e são hábeis na arte do ilusionismo político. Na equânime sociedade civil, os magistrados decidem quanto devem retirar dos cofres públicos. Aqui e acolá estabelecem alguns auxílios com preços módicos, não muito além daqueles recebidos pela grande parte da população. Eles se superam sempre, quando estão entediados aceleram carros requintados e quando abordados deixam de servir as leis, tornam-se seus patrões e sem querer, mostram que de fato Rousseau tinha mesmo muitas razões.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Filosofia, Direito e Justiça.



Provocando os alunos numa dessas aulas sobre as possíveis relações entre cultura e direito, fui surpreendido pela seguinte intervenção: “Professor! Já nascemos velhos. Nascemos herdando uma cultura que não criamos”. Entre elogios e incentivos, voltei pra casa com o propósito de procurar o autor desta afirmação. Utilizando a tecnologia como ferramenta a favor do conhecimento, não foi difícil descobrir a poesia elaborada por Carlos Drummond de Andrade. Deixando de lado o poeta brasileiro, cabe-nos pensar onde e quando, como e porque é inevitável que cedo ou tarde filosofia e direito terminem se encontrando por aí.
Lendo alguns textos de Paulo Nader, no seu manual “Filosofia do direito”, encontramos o direito enquanto processo de adaptação social. Adaptar é sempre algo perigoso, mas igualmente necessário. Adaptar é um dos verbos que melhor traduz o fenômeno humano. Nós mesmos estamos sempre nos adaptando diante de determinadas circunstâncias criadas pelas nossas mãos ou por aquelas dos coetâneos.
Este processo de adaptação social que é o direito deve atingir suas metas, seus próprios fins que remetem a insuperável teleologia do direito. Os estudiosos deste processo de adaptação tão antigo quanto novo, afirmam que a finalidade do direito consiste em atingir o equilíbrio social, que é o legítimo sobrenome da justiça buscada pelo direito e também pela filosofia.
Sabemos que não se busca aquilo que não se conhece. Para que a busca de algo seja eficaz, é preciso saber as características deste algo procurado.
Sendo assim, a filosofia procura dizer ao direito o que é esta justiça que ele busca ou ao menos deve buscar. Não quero apresentar uma definição tout court acerca da justiça, nem analisar um quadro histórico com as evoluções e as possíveis involuções desta definição. Mas de qualquer modo há sempre uma identidade que deve ser vista em toda definição de justiça, a sua ausência implica a dura e irrevogável pena de desvirtuá-la, torná-la qualquer coisa exceto aquilo que ela é verdadeiramente.
Mesmo respeitando as peculiaridades dos autores e as circunstâncias históricas que envolvem a definição de justiça, esta jamais se eximirá da tarefa que consiste em “dar a cada um aquilo que é seu”. Esta identidade fundamental da justiça parece vaga, mas quando nos debruçamos sobre a mesma, percebemos que se trata de algo concreto, enraizado no tecido socioeconômico da cidade. A justiça enquanto tarefa de “dar a cada um aquilo que é seu” dinamiza o direito no seu ideal de encarar a cidade a partir do seu necessário equilíbrio social. E recorda que o direito não pode ser apenas um puro e simples produto cultural. O direito absolve as exigências e apelos de uma cultura, mas está atento para criticá-la, para não mimá-la, não torna-la má educada, viciada em reservar muito para poucos e bem pouco para muitos.

sábado, 1 de novembro de 2014

Salve! Salve! Educação!



Há poucas décadas, certos iluminados da educação teorizaram que os processos educacionais atingiriam maiores resultados somente quando estivessem distantes de qualquer aspecto de patriotismo. Era o fim de algumas disciplinas como Educação moral e cívica e Organização Social Política Brasileira (OSPB).
Deste modo, formamos uma geração que desrespeita os representantes democraticamente instituídos, que não sabe colocar-se diante da bandeira da pátria e desconhece o hino nacional (e nem falemos sobre a bandeira e o hino estaduais).
Constatamos o esvaziamento do civismo, tão ausente numa geração de crianças, adolescentes e jovens que desonram os idosos e as idosas que trabalharam e prepararam as cidades por eles frequentadas. Insatisfeitos com estas chamadas amarras da educação, tais iluminados, em busca de um processo educacional inteiramente livre, postularam o afastamento de todo caráter religioso. Eis aí uma geração distante do cívico e do religioso.
Quais são os resultados obtidos com a ausência destes fundamentos nas escolas frequentadas por nossas crianças? As escolas dos nossos filhos foram humanizadas? Tornaram-se lugares mais seguros? Os nossos pais estão tranquilos quando sabem que os filhos estão nas escolas? As escolas se destacam pelo nível de produção de conhecimento? Ou por práticas que mais parecem com os cenários dos relatos policiais dos telejornais? E os tais iluminados da educação, ainda continuam de plantão? O que precisamos retirar agora da educação?
Como se não bastasse, um grupo seleto dentre estes iluminados, enxerga nos docentes, a causa dos males que assolam a educação contemporânea. Ora, de que queremos acusá-los? Acusá-los de serem brutalmente ameaçados e agredidos pelos alunos quando não alcançam a nota desejada?
Acusá-los de trabalhar sem as mínimas condições para tal? De trabalhar com salários atrasados, defasados, distantes do tão badalado piso nacional? De protestar contra um salário que não representa o esforço realizado ao longo de uma licenciatura com suas respectivas especializações? De protestar contra um salário que não lhes garante direitos ao lazer e cultura assegurados pela constituição federal, que ainda recebe o cândido adjetivo de cidadã?
Ou seria apropriado acusá-los de não desistir diante das dificuldades impostas por um Estado que delega sempre mais ao privado os próprios deveres? Vamos acusá-los de apostar a vida em prol da defesa deste tesouro nacional que jamais será leiloado e muito menos sucateado? As imensas reservas deste tesouro nacional são formadas por cada criança, adolescente, jovem, adulto e idoso, cada brasileiro que não se terceiriza e nem foge à luta. Salve! Salve! Educação!

Fé e Política com a releitura de Jacques Maritain



O II Seminário Fé e Política “Dom Helder Câmara: Fé, política e realidade local”, realizado durante os dias 08 e 09 de agosto com a colaboração do Conselho arquidiocesano de leigos (Conal), OAB e UFS, nos colocou diante das relações que entrelaçam fé e atividade política. Estabelecidas a partir do pluralismo sociocultural vigente na sociedade, tais relações evitam as instrumentalizações reducionistas e constroem pontes largas e seguras em prol das concretizações da cidadania.
Com esta irrequieta noção que implica vários desdobramentos, construímos a mais sólida das relações entre fé e política, pois esta revela o escopo comum almejado por ambas. Se a boa política visa o crescente exercício da cidadania, a fé autêntica procura as melhores repercussões do seu próprio ato de crer.
Aqui recordamos um grande homem cristão, que dedicou o seu itinerário intelectual para mostrar a possibilidade de relacionar fé e política sem confundi-las e respeitando as suas identidades. Jacques Maritain, através de tantas obras, como “O filósofo na cidade”; “O Homem e o Estado”; “Humanismo integral” e outras, mostrou que juntas, fé e politica, transformam-se em ferramentas indispensáveis para todo verdadeiro processo de humanização.
Escrita nos anos trinta, “Humanismo Integral” suscitou grande admiração pelo teor inovador e pela capacidade de articulação, mas reservou também muitas críticas, colocadas sobre os ombros de Maritain. Neste período da história, a democracia era algo novo, até mesmo pouco confiável, não se sabia para onde nos levaria e todas estas tensões pairavam sobre a obra de Maritain, que diante da crise das monarquias europeias, trazia a proposta de uma aproximação entre fé e política democrática.
Dentre as acusações que atingiram o trabalho realizado por Maritain, destaca-se a que consiste em compreender a obra “Humanismo Integral”, como o ato de fundação de um partido político próprio da Igreja católica. Nesta direção caminharam nomes ilustres como Eduardo Frei, Manuel Ordóñez, Franco Montoro, Amoroso Lima e outros que deram vida ao chamado “Movimento de Montevidéu”.
Com a clareza que caracteriza a perspectiva francesa, Maritain responde aos seus críticos afirmando que com a obra “Humanismo Integral” não deseja criar um partido da Igreja católica, mas sim inseri-la na complexidade dos partidos políticos.
Recordando dom Helder Câmara, o homem que dinamizou a Igreja católica e a sociedade brasileira, o II Seminário Fé e Política retomou o sonho de Maritain: despertar o cristianismo, para que as suas forças vitais inspirem uma atividade política sempre mais comprometida com o valor inalienável que é a pessoa humana.