Uma das características incisivas
da filosofia é a sua identidade reflexiva. Flexionando o pensar, a filosofia se
concentra sobre coisas, situações e particularmente sobre pessoas que comumente
não são percebidas. Banidas dos cartões postais de uma cidade, que sabe ser mãe
protetora de filhos seletos e apenas genitora desatenta de uma prole imensa que
possui bem pouco para oferecer. Assim esboçamos um perfil acadêmico que está em
sintonia com os reais objetivos da filosofia: construir cidadania.
A reflexão sobre a cidadania
sempre encontrou amplo espaço nos corredores da filosofia, sobretudo através da
noção de participação. Desde os seus primeiros passos a filosofia quis promover
uma maior participação, indagando os seus entraves e apontando novas direções.
Aqui não se trataria da participação cara aos olhos do sistema platônico,
imbuída de uma metafísica racionalista, concentrada sobre a contemplação das
ideias responsáveis pelos pálidos reflexos contingentes dos quais dispomos para
a construção do conhecimento.
Comumente há uma dificuldade na
abordagem prática da filosofia. Talvez esta dificuldade resida no modo de
expô-la, mas acredito que outros elementos estão em jogo quando se fabrica a
ideia de uma filosofia etérea. A filosofia não é algo para lunáticos. Aqueles
que a apreciam compartilham as mesmas inquietações de toda a raça humana. Os
clássicos mostraram um perfil da filosofia debruçado sobre a noção de práxis,
da qual decorre uma filosofia chamada de prática. Nas páginas da filosofia de
Aristóteles temos um auxílio mais preciso para um esboço eficaz da cidadania.
O céu, as estrelas, as ondas do
mar jamais seduziram a filosofia retirando-a dos seus verdadeiros propósitos. É
preciso recordar que a filosofia nasce política. O berço sobre o qual se
desenvolve é a polis na variedade de suas dinâmicas institucionais. Segundo a
teoria do filósofo-rei presente na reflexão de Platão, quanto mais aproximar-se
do Bem, o governante concretizá-lo-á na polis através do conjunto de leis. É
preciso conhecer o Bem para alcançá-lo? Saber o que é a Justiça para
instaurá-la? Conhecer a Verdade para defendê-la? Abordar as coisas como são em
si mesmas e não apenas a partir de opiniões oscilantes terá sempre destaque nas
searas da filosofia. Uma cultura imediatista que privilegia a dica e sobrepõe o
questionamento fará com que alcancemos, instauremos e defendamos quaisquer
coisas exceto a cidadania que realmente queremos.
Numa das obras de Aristóteles, Ética a Nicômaco, encontra-se a noção de
eudaimonia enquanto propósito da
filosofia. Normalmente traduzida como felicidade, a eudaimonia pensada pela filosofia antiga vai além de uma abordagem
sentimental, pois implica a realização de aptidões naturais ou adquiridas que
desenvolvidas, esboçarão a felicidade buscada pelo cidadão. A filosofia atinge
a polis para verificar se, como, quando e em que medida oferece ao cidadão os
instrumentos indispensáveis para a sua realização. O maior contributo da
filosofia para a política consiste em torná-la um instrumento em prol da
cidadania. Ao lado da filosofia, a política se distancia das vestes ideológicas
e enxerga aqueles que estão fora. Entre filosofia e política há uma parceria
que delineia os percursos de inclusão que são objetos de estudo da cidadania.
Criar políticas geradoras de
cidadania, talvez seja um dos grandes desafios das democracias contemporâneas.
A filosofia não pode abrir mão da sua tarefa de indagar a relação entre polis e
cidadão para que permaneçam interligados por um mútuo cuidado. A polis favoreça
o necessário para que o cidadão não mais expectador distante e passivo,
participe ativamente das decisões que as norteia. O cidadão por sua vez, seja o
custódio da polis, inserindo-se nos espaços conquistados graças ao
aprimoramento das próprias aptidões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário