sábado, 18 de junho de 2016

O negro, a religião e a escravidão

Tomando o território brasileiro, os portugueses transformaram tudo o que pertencia aos indígenas numa terra de santa cruz. Cultos e divindades dos nativos caíram num segundo plano e cederam espaço ao credo religioso dos invasores. Conhecendo a língua indígena estes logo cuidaram para que recebessem adequada catequese de modo que o quanto antes se preparasse um povo disposto, cristão e precisamente se obtivesse uma nação católica, imagem e semelhança da civilização católica presente nos séculos medievais da história.
Pouco depois o mesmo aconteceu com a chegada dos negros no frutífero solo brasileiro. Era preciso abrir mão da própria religião para assumir o credo religioso dos senhores que aqui se instalaram com seus oratórios repletos de santos festejados em várias épocas do ano. A religião marca intimamente a identidade de um povo que possui um modo próprio de transcendência. Dia após dia, se instalou aquela dicotomia que se chamaria de um culto público e um culto privado. Nas suntuosas igrejas deste país, o padre – filho de uma nobre família – presidia o culto oficial reunindo os escravocratas em busca de um consolo para a consciência opressora. No silêncio fétido da senzala, entre um castigo e outro, o negro encontrava tempo para transcender auxiliado por divindades travestidas de catolicidade. Quando língua e religião são mutiladas, a identidade de um povo é gravemente adulterada.
A Constituição de 1824 no artigo 5º é bastante clara quando garante a possibilidade de outros cultos religiosos desde que não atrapalhem a liturgia hegemônica do culto católico. Assim as expressões religiosas africanas foram conduzidas para longe dos cartões postais brasileiros que permaneciam abertos só para as solenes manifestações religiosas oficias. O negro não apenas abdica de sua raiz religiosa mas é obrigado a receber os sacramentos católicos, únicos capazes de conseguir melhor destino eterno visto que este terreno foi dominado pelas condições precárias, pela ausência dos afetos familiares e pelo desespero. Talvez aqui está uma das maneiras de tocar a capa da catolicidade que cobriu o teor de agressividade que originou a religiosidade brasileira com sua maquiagem de hospitaleira. Missas, sacramentos e homilias serviram para anestesiar o negro escravizado no Brasil. O catolicismo de então não foi um instrumento eficaz de libertação, muito pelo contrário, visou reduzir o cheiro insuportável da opressão que a escravidão lançou neste nosso país.
A religiosidade africana também foi marcada como milhares de negros que tiveram os seus corpos dilacerados pelo ferro quente designando sua pertença e submissão ao senhor. Enquanto nas grandes catedrais deste país se cultuava um deus temível, branco e europeu, nas periferias estava um deus desconhecido e de segunda categoria para ouvir os negros. Este seria no mínimo um deus assaz duvidoso e sem muito o que fazer para ouvir aqueles e aquelas que não possuíam bens, nem grandes propriedades e nem belas vestes vistosas. Além de despersonalizar o negro os detentores das rédeas do poder, responsáveis também pela interpretação teológica e política da época, logo demonizaram a própria religião afro. Se o catolicismo dominante financiado pelos latifundiários foi a religião da conformação, a religião afro deu passos fortes tornando-se assim, valioso instrumento de reivindicação. Com seus cantos e danças que manifestam a alegria da vida embora sofrida e oprimida, a religiosidade afro luta pelo direito de ser outra, totalmente livre nas suas manifestações. Sem quaisquer entraves sociais e desimpedida, a religião afro também grita por cidadania.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Negro, discriminado e em busca de cidadania.

Se há uma característica predominante na reconstrução histórica das relações sociais brasileiras, esta reside na produção da discriminação do índio e do negro, simplesmente por não serem europeus, brancos e católicos. Por mais que se veja no decorrer dos séculos uma aproximação dos biótipos através dos laços sentimentais e afetivos, estas relações permanecem no aconchego do lar e repercutem pouco sobre o tecido social, que logo deseja saber o que houve, quantos obstáculos foram superados e o que será feito para que filhos e filhas desta união, não sintam o peso insuportável do fardo social presente nas faces da discriminação.
Encontra-se numa visual social que as conquistas obtidas do século XIX aos dias atuais, tornaram o Brasil um país que se destaca pelos passos largos dados na construção da inclusão social. De modo que é até possível que se reveja algo no quadro social brasileiro, mas a discriminação é uma carta que permanece trancafiada nos porões do Brasil negreiro. Pensar o Brasil contemporâneo como uma realidade na qual não há discriminação racial é o mesmo que acreditar que há trabalho digno para os pais, que as crianças não passam fome e estão na escola, que a merenda escolar não é desviada por aqueles que deveriam cuidar da coisa pública, que os hospitais públicos funcionam com padrão FIFA, que as mulheres não são agredidas e estupradas. É retirando a venda dos olhos que se constata o incontestável.
A discriminação impõe sobre o negro brasileiro os mesmos castigos que reduziram a vida dos seus antepassados mostrando que a cidadania sempre foi um privilégio reservado para poucos. Assim, o negro é associado a tudo aquilo que não se quer ver, que não condiz com as boas decisões políticas, com os lugares frequentados por uma casta seletiva, com o aprendizado educacional reservado aos filhos das elites brasileiras conhecidas pelo labor em prol da estratificação da desigualdade social. A mácula social se expressa de maneira tão sorrateira que o gari negro, a prostituta negra, o presidiário negro, a faxineira negra e o assassinado negro, são conservados nas gavetas da normalidade social, enquanto que a universitária negra, o engenheiro negro, a advogada negra, o médico negro, sinalizam uma anormalidade social que somente é compreendida no contato com a fonte racial branca, naturalmente vencedora e por isso mesmo detentora inquestionável das hegemonias sociais.
Quanto dito aparece amplamente descrito através de uma aparelhagem midiática que reserva ao negro os papéis condizentes com sua natureza submissa e serviçal. Demarcados lugares e papéis, cabe ao negro lutar para ter um desempenho de excelência que fará dele um de nós. O processo de negação do negro que marca fortemente a sociedade brasileira não se deu só através das indizíveis atrocidades físicas cometidas, mas atingiu o campo da consciência fazendo com que o negro abrindo mão de si, isto é da sua identidade cultural, afirmasse a própria existência distanciando-se de si e assumindo a cultura daquele outro que captura e agride. Sendo assim, cabe ao negro deixar de ser-negro para ser o outro-branco.
Deste modo, a lei nº 12.711/12 apresenta-se como um acesso histórica e socialmente negado, é a visibilidade daquelas e daqueles que por séculos estiveram à margem de uma sociedade que os relegou seja por motivos econômicos, políticos, jurídicos e até religiosos. A lei 12.711/12 é um importante instrumento de construção da cidadania que foi retirada e que se projeta para além do socialmente permitido. Implica a necessária abertura de espaços nos quais são compartilhados os aspectos culturais do bem comum social. É o resultado de um país que ensaia largos passos na direção dos que sempre foram historicamente lesados. É a voz que acorda o gigante adormecido para conscientizá-lo deste seu papel intransferível – esquecido por quinhentos anos –, que consiste em promover condições iguais para todos. 

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Filosofia, Cristo e Justiça.

Quando as circunstâncias que delineiam o cotidiano são relidas com o intuito de inseri-las num único conjunto constata-se uma agressão de proporção incalculável que macula a finalidade de toda autêntica interpretação: a ampliação dos horizontes do conhecimento. Se há uma caraterística marcante em todo itinerário contemporâneo é a clara percepção da excessiva segmentação, a identificação dos similares e a sequente ocultação da diversidade. O escopo de toda interpretação reside na inadiável inclusão do diferente e nos respectivos caminhos de emancipação.
Desde os primeiros passos do conhecimento a filosofia veste a temível camisa da crítica. Não se trata de uma crítica excludente que sentencia imediatamente o encarceramento do diferente. Singularizar não é uma tarefa social exercida pela filosofia, mas sim custodiar todos aqueles elementos que incitam o dinamismo das mais variadas formas de pluralismo. Quando só dialoga consigo própria, que benefício causa a desestabilizadora ação filosófica? A religião é uma valorosa parceira da filosofia que a auxilia na realização dos almejados ideais sociais.
Considerando a amplitude do fenômeno religioso construído em torno do movimento desempenhado por Cristo, vê-se como entre as atividades religiosa e filosófica existem importantes pontos comuns que repercutem sobre o quesito inclusivo indispensável para todo espaço social. Na relação que instauram com uma determinada cultura, ambas estão prontas para criticá-la e redimensioná-la quando estiver em jogo a defesa da integridade da pessoa humana, que em toda circunstância é sempre uma realidade indivisível e irredutível.
O percurso privilegiado por Cristo enfatiza o valor incomerciável da pessoa humana em variados momentos que provocam uma reflexão capaz de aproximar filosofia e religião. Ressalta-se o cuidado de Cristo com os doentes, com homens e mulheres que sob o efeito alienante de um ilusionismo religioso foram distanciados dos recursos do convívio social. Cristo foi um obstáculo removido pela sociedade do seu tempo por defender a autonomia entre as esferas temporal e espiritual, a dignidade da mulher e, sobretudo por não ser aliado de uma política corrupta que camufla as tentativas que visam uma clara manutenção do poder dissociado dos critérios da justiça.
A edificação da justiça é convidada a ultrapassar o meramente textual, o ritualismo que transforma a atividade jurídica num culto reservado para poucos. Como se vê, a religião e a sociedade justa não são perspectivas assim tão diametralmente opostas como pensam as óticas unilateralistas que empobrecem o debate contemporâneo. A relação construída neste percurso entre filosofia, religião e justiça não só não é arbitrária, mas evidencia que esta tríade compartilha um indiscutível escopo comum, na medida em que há uma valiosa soma de indispensáveis esforços que buscam o pleno desenvolvimento da pessoa humana ao mesmo tempo questionadora, religiosa e sedenta de justiça.