Reconstruir o perfil do fenômeno
religioso no Ocidente implica passar necessariamente através de Cristo e do
cristianismo decorrente. Existe uma vasta literatura acerca da historicidade de
Cristo por vezes apresentado com vestes diferentes e contrastantes. No
Evangelho, Carta Magna do cristianismo, temos posições preciosas sobre este
jovem nazareno que teve sua mensagem amada por uns e odiada por outros.
Cristo não nasceu no seio de uma família
dominante do cenário geopolítico do seu tempo. Sabemos que as circunstâncias
instaladas em volta do seu nascimento foram extremamente difíceis. Estes pais
desprovidos de bens encontraram apenas uma gruta disponível para acolher o
ingresso deste primogênito nesta humanidade de luzes e trevas que quase sempre
parecem mais convincentes.
Não temos muitos relatos acerca da
infância de Cristo, porém no Evangelho algo corre veloz dos lábios deste menino
e atinge diretamente os ouvidos de seus pais: “Não sabíeis que devo ocupar-me
das coisas de meu Pai?” (Lucas 2,49). A resposta dada é no mínimo intrigante.
Imaginemos um número incontável de
pessoas numa grande manifestação de fé como a festa da Páscoa na cidade de
Jerusalém. Nestes momentos de entusiasmo, de encontros com familiares e amigos
para partilhar a vida, é normal que durante a viagem de retorno ouçamos a
pergunta: “Alguém viu o meu filho?” Os pais conhecem o peso do desespero que os
invadem nestas situações. Não o encontrando na caravana, retornaram e se maravilharam
ao verem o menino discorrendo com os doutores da lei, perplexos diante de suas
interrogações. (Lc 2,41-48)
O texto do Evangelho de Lucas mostra o
rosto de um menino decidido, quase duro e ríspido. Não narra o pulo de um
menino nos braços dos pais, mas uma resposta clara e madura como muitas que
ouvimos das nossas crianças. Ocupar-se das coisas do Pai não foi minimamente a
resposta involuntária de um menino crescido, mas sim o projeto que guiou toda a
vida de Cristo.
Agora nos deparamos inevitavelmente com
uma pergunta: Quais são as coisas do Pai apontadas por Cristo no Evangelho? A
experiência humana mostra que as coisas dos pais são as mesmas dos filhos. São
estes que perpetuam os gestos dos pais e transmitem uma herança cultural,
afetiva e espiritual. É somente com o resgate da espiritualidade que conhecemos
as coisas do Pai em toda extensão e profundidade. A imanência humana silencia
diante do semblante do Pai que é Transcendência Infinita.
A Religião jamais abrirá mão desta
identidade, pois com seus ritos e celebrações, enfatiza a íntima relação que
nos familiariza neste encontro humano e divino. O Evangelho diz que o Pai nos
procura para que o adoremos em espírito e verdade, mas evidencia ainda nossa
busca quando Filipe dirigindo-se a Cristo manifesta o anseio de todo universo
humano: “mostra-nos o Pai e isso nos basta”. A resposta de Cristo ressoa na história
e acentua a identidade da Religião enquanto lugar deste precioso encontro: “Há
tanto tempo que estou convosco e não me conheceste, Filipe! Aquele que me viu,
viu também o Pai” (João 4,23; 14,8-9).
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