sábado, 23 de maio de 2015

Religião, Violência sexual e a menina Araceli.

No dia dezoito de maio, recorda-se a jornada nacional de combate ao abuso sexual. Este dia enfatiza a memória de uma menina brasileira chamada Araceli, sequestrada, espancada e violentada na capital do Espírito Santo, tendo seus sonhos destruídos sob o peso da barbaridade humana. Esta menina de apenas oito anos, filha de um eletricista como outros que revisaram as instalações elétricas de tantos lares, foi brutalmente assassinada por dois homens de influentes famílias capixabas, capazes de ludibriar o olhar da justiça que jamais os culpou por tamanho crime ocorrido em 1973.
Na sua etimologia, o nome Araceli significa “altar do céu”, mas o que se celebrou sobre o corpo desta menina foi detestável aos olhos de Deus, foi um culto aos sentimentos mais desprezíveis que povoam as trevas desta humanidade. É normal que perguntemos nestes momentos de dor: Onde Deus estava? O que Deus fez por Araceli?
É preciso reconhecer que não temos todas as respostas guardadas nos bolsos, mas penso que uma boa resposta diria que Deus sofreu todas aquelas dores, o medo de um sequestro, as doses de drogas ingeridas, a falta de alimentação que os enfraqueceram, as mordidas que arrancaram os seios e outras partes íntimas, o abuso sexual, as dores causadas pelo ácido derramado sobre os corpos, a morte violenta e prematura de uma menina que transcorria o tempo entre a escola, as bonecas e os afetos dos pais.
Os corpos de Deus e da menina Araceli foram jogados numa montanha de lixo hospitalar e por conta da justiça foram sepultados somente três anos depois, como se fizesse alusão aos três dias nos quais o Filho de Deus esteve preso aos laços da morte. (cf. Lucas 18,33).
Acredito que Deus continua perguntando a justiça brasileira, as religiões presentes no território capixaba, aos amigos que com Araceli frequentavam aquele mesmo Colégio São Pedro: Onde está Araceli? Deus sabe onde está Araceli, mas quer ouvir a resposta, quer saber como nos enxergamos, se crescemos humanamente, comprometidos com o outro, particularmente na defesa do mais vulnerável. É assim que Deus continua questionando a sociedade, sobretudo quando esconde mazelas sociais sob os suntuosos tapetes da indiferença: “Onde está o seu irmão Abel? Caim respondeu: Não sei. Por acaso eu sou o guarda do meu irmão? Deus disse: O que foi que você fez? Ouço o sangue do seu irmão, clamando da terra para mim” (cf. Gênesis 4,9-10).
Na Escritura, há um episódio bastante conhecido, no qual os discípulos tomam medidas para que as crianças não se aproximem de Jesus e que pode responder a pergunta “Onde está Araceli?”. Vejamos como Jesus se dirigiu aos seus discípulos: “Deixem as crianças vir a mim. Não lhes proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas” (cf. Lucas 18,16).
A menina Araceli não cresceu com os coetâneos, não se realizou profissionalmente, não construiu família, não deu netos aos seus pais. Hoje Araceli seria uma bela jovem de cinquenta anos, teria sepultado o pai falecido em 2004 e estaria cuidando da mãe, preocupada com a casa, com o marido, com os filhos e netos, visto que a violência humana a impediu, ela está agora neste Reino que é o Coração de Deus.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Religião, Água e Indignação.



No texto sagrado, existem inúmeros relatos marcados por esta intrigante presença da água. Se olhássemos os dois primeiros versículos do primeiro capítulo do Gênesis, veríamos que o autor sagrado faz compreender que a água precede a própria obra da criação. Vejamos o texto: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia, as trevas cobriam o abismo e um vento impetuoso soprava sobre as águas” (cf. Gênesis, 1,1-2).
Recordamos a cena do dilúvio, na qual Deus sob o peso da violência humana deseja lavar a terra de todos os seus males. A mesma água que destrói, salva Noé, o homem justo e anuncia o início de uma nova criação. É este o pedido de Deus a Noé: “Eu vou mandar o dilúvio sobre a terra, para exterminar todo ser vivo que respira debaixo do céu: tudo o que há na terra vai perecer. Mas com você eu vou estabelecer a minha aliança, e você entrará na arca com sua mulher, seus filhos e as mulheres de seus filhos” (cf. Gênesis 6,17-19).
Com as águas do mar, os hebreus escravizados foram libertos das garras dos egípcios escravizadores, gananciosos e distantes do Deus que viu seu Filho nascer na extrema pobreza de um curral, como tantos outros filhos de mães que ainda hoje ouvem o barulho das portas fechadas que retardam e por vezes impedem a extraordinária renovação da vida. Nas Escrituras, Deus pede a Moisés, o homem salvo das águas: “[...] ‘Estenda a mão sobre o mar, e as águas se voltarão contra os egípcios, seus carros e cavaleiros’. [...] As águas voltaram, cobrindo os carros e os cavaleiros de todo o exército do Faraó, que os haviam seguido no mar: nem um só deles escapou” (cf. Êxodo 14, 26.28).
Durante estes dias de conquistas científicas e tecnológicas, ouvimos em diversos lugares, nas ruas quando paramos diante dos semáforos, nos restaurantes que tiveram suas atividades ameaçadas, nos templos religiosos, nas escolas públicas que sofrerão mais uma greve, graças ao governo Jackson, que nega o piso nacional aos professores e nas escolas de ensino superior, ressoa a seguinte pergunta: O que seria de nós sem a água? Como é possível que a sociedade pós-moderna, das cirurgias e transplantes mais sofisticados possíveis, aprimorando os índices de qualidade de vida, questione-se sobre algo tão simples?
No último sábado, dia 09 deste mês, vimos que de fato não só o cavalo de Troia, mas os de Laranjeiras também reservam surpresas. Com aqueles cavalos sobre a ponte, acentuou-se o descaso que domina o cenário da coisa pública, reservando-nos serviços de menor qualidade e quantidade. Estamos ouvindo os sons dos aplausos ao governo do Estado, Deso, Petrobrás e outras frentes que se somaram para que 70% da população aracajuana tivesse normalizado o abastecimento de água nos lares. Será que merecem? Talvez sim, desde que não se troque remediação por prevenção.
Será que Tales, filósofo pré-socrático e naturalista, tinha razão? A água é o princípio de todas as coisas?

terça-feira, 12 de maio de 2015

Filosofia e Religião: A Crise do Compromisso.



Nestes dias, estava lendo algo sobre as relações entre filosofia, ciência e religião. A perspectiva interpretativa aberta por Bertrand Russel desperta bastante interessante, pois retoma as concepções usuais atribuídas aos termos. Comumente, a ciência recebe o título honorífico de detentora das realidades comprovadas. A ciência moderna exerceu aquele papel que durante o medievo era prerrogativa exclusiva da religião.
Na modernidade filosófica, a religião começa a falar baixinho e se amedronta diante do vozerio da ciência. A religião se desinteressa sempre mais das repercussões sociopolíticas conhecidas nos séculos medievais. É assim que a religião moderna se torna assunto privado, vivenciado entre as paredes das igrejas ou dos lares com estas relacionados.
A religião moderna se torna intimista e vítima do solipsismo, enxerga apenas a si mesma. Lugar de sentimentos repletos de oscilações e imprevisibilidades, a religião moderna é destronada pela razão e perde o seu papel de prestigiosa locutora de certezas.
Entre a hegemonia das certezas proferidas pela ciência moderna e as oscilações sentimentais da religião, Russel identifica um espaço precioso e perigoso, dedicado ao trabalho reflexivo. A fértil expressão utilizada por Russel identifica este espaço como “Terra de Ninguém”, como um lugar até então privo de demarcações e populações. Onde está a filosofia? Nas salas das universidades europeias? Nas grandes e renomadas universidades brasileiras? Nas bibliotecas frequentadas pelos estudiosos? Entre as barbas dos professores catedráticos?
Russel sopra sobre um perfil da filosofia que a mantém forasteira, livre dos pesos impostos pelo politicamente correto. A filosofia está sempre pronta para partir, gentilmente agradece aos convites que pretendem hospedá-la nos convencionalismos e modismos culturais dos nossos dias.
Entre as pretenciosas certezas da ciência e os confusos discursos da religião, a filosofia apresenta-se qual abrigo salutar de tantos conflitos. Dentre estes, caberia ressaltar aquela anemia cultural que tanto tem nos caracterizado. Priva de forças culturais, a sociedade contemporânea nas suas várias instâncias, tornou-se hábil na arte de importar e perdeu a sensibilidade imprescindível para a arte de criar.
O vasto edifício cultural, construído precedentemente parece não ter nos enriquecido, mas sim nos enrijecido, nos paralisado. A herança cultural que recebemos teria nos reduzido a simples reprodutores improdutivos? Desde quando se começou a banir dos vocabulários culturais as noções que remetem ao compromisso? Incapaz de definir-se, a cultura hodierna que chama a si mesma de pós-moderna, cancelou os compromissos familiares, aqueles político-partidários e até mesmo os compromissos religiosos.
Hoje, diante do multiplicar-se de religiões, vê-se a desintegração do compromisso no âmbito da religião. Não importa o discurso em si, mas sim o que provoca em mim. É proibido mudar-se e, portanto quando o discurso não mais responde aos apetites, providencia-se outro melhor, mais confortável aos ouvidos.
Não sei com quais critérios, mas a sociedade contemporânea tem-se mostrado ágil na fabricação de novas religiões e novos deuses, todos à luz da própria imagem e semelhança.