sábado, 28 de março de 2015

Filosofia, Religião e Teologia.



A religião pressupõe e suscita uma reflexão teológica, um discurso sobre Deus que toca a história da humanidade. Mesmo diante das teorias mais ferozes acerca da inexistência de Deus, a história mostra que se trata de uma realidade muito mais próxima do que se imagina. A mitologia grega é repleta de deuses solícitos aos apelos humanos mediante a oferta de sacrifícios e a realização de tantas outras tarefas. Assírios, egípcios e povos indígenas já tinham elaborado discursos sobre Deus e, portanto possuíam aspectos teológicos.
As páginas da história humana são repletas de construções e destruições de altares que por vezes foram ocupados pelos próprios seres humanos, contingentes e sedentos de eternidade. O discurso teológico, porém não está atrelado necessariamente ao aspecto religioso. As etapas da filosofia platônica exalam sempre este apelo ao transcendente, ao divino, ao ideal enquanto agente transformador do imanente, do humano, do real.
O mito de Er apresentado por Platão acentua bastante este aspecto de uma instância superior. O soldado caído em batalha presencia acontecimentos realizados num estado post mortem. Algumas almas premiadas pelas boas ações recebiam dotes preciosos. Outras, castigadas pelas contradições sofriam duras penas e castigos indizíveis. Er permanece extasiado diante do espetáculo descrito por Platão e recebe a incumbência de retornar sobre a terra para ser uma espécie de sinal que recorda a existência de uma realidade que está além da fugacidade humana.
Mesmo quando a percepção não é assim tão clara e distinta como desejaria Descartes, filosofia, religião e teologia se encontram nesta inevitável areia movediça que os séculos chamam comportamento humano. Diferente das demais existências, o ser humano não pode viver plenamente quando se assemelha a um trem desgovernado, fora dos trilhos, em altíssima velocidade, destinado ao massacre de si e de seus contemporâneos.
O ser humano necessita de parâmetros, de luzes que o auxiliem no decorrer do percurso vital para que atinja seus verdadeiros fins. Acentuadas do ponto de vista antropológico, filosofia, religião e teologia, entrelaçadas por este preciosíssimo fio da teleologia, apresentam um caráter catártico, segundo o qual a historicidade humana equivale a um longo caminho de purificação. A filosofia clássica, particularmente no seu momento platônico, apresentou-se qual itinerário de libertação dos sentidos, fontes de erros e equívocos que retardam a contemplação da ideia alcançada através do esforço racional.
A filosofia de Platão pretendeu ser um exercício preparatório para a morte, momento no qual a alma enfim liberta deste cárcere que é o corpo verá estas realidades, não mais sob o véu da temporalidade, mas sim como verdadeiramente são. A morte na filosofia de Platão é lugar no qual finito e infinito se encontram e marcam profundamente a trajetória humana. Não é a toa que condenado injustamente, Sócrates dirige aos seus acusadores as seguintes palavras: Mas, já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, quem vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para Deus”.

sábado, 21 de março de 2015

Sobre a Religião: Sociedade e Revelação.



Recordando o cinquentenário de conclusão do Concílio Vaticano II, encontramos ocasião propícia para apresentar questões pertinentes acerca do documento conciliar Dei Verbum. Movido pelo Espírito de Cristo, o Concílio retomou aquela pedagogia divina, sintetizada por Luigi Bogliolo com a bela expressão metodologia da encarnação. Nas páginas da Escritura, vemos que o “Verbo se fez carne” e toda a Revelação divina visa à encarnação do Verbo que nos resgata e nos humaniza.
Nutrida pelo Verbo eterno, a Igreja é testemunha da Revelação e por isso perpetua este movimento divino que tende a encarnar-se isto é, tende a revelar-se a um povo real, que vive num dado momento histórico, cercado por virtudes e vícios, envolvido com as conquistas e os problemas do tempo presente. A Revelação divina não é uma expressão exegética, não é simplesmente descritiva. No seu Filho, Deus assume os traços de um povo, para transformá-los à luz dos critérios da vida em abundância.
Maximizando a expressão que dinamiza as construções sociopolíticas, afirmamos que a Revelação se dá numa sociedade, na ampla e variada sociedade dos seres humanos. É através da pregação do Verbo encarnado, que ouvimos a vontade do Pai. Ele espera que não sejamos apenas sócios desregrados, mas nos redescubramos irmãos comprometidos uns com os outros. Na Revelação divina, há um dinamismo sócio - transformador sem o qual a Igreja degeneraria num imenso museu internacional, repleto de peças preciosas, mas incapazes de incidir sobre o hoje, tão sedento de redenção.
A Campanha da Fraternidade deste ano - Igreja e Sociedade - faz-nos recordar o quanto é necessário que pelo testemunho dos cristãos, a luz da Revelação dissipe as densas trevas da corrupção que afeta nosso Brasil, que violenta esta Terra de Santa Cruz. A Revelação divina implica uma ética da fraternidade e da inclusão (Dei Verbum, 2).
No livro do Gênesis, o autor sagrado fala acerca da relação entre Deus e os nossos primeiros pais, descreve uma relação de confiança e amizade construídas num diálogo amoroso e de entrega. Seduzida pelo mistério da iniquidade, a humanidade aqui representada, desconfia de Deus e o enxerga como alguém que usurpa a liberdade e não como aquele que garante seu pleno desenvolvimento. A humanidade escolhe outros amigos que são os ídolos que tramam contra Deus para torná-lo sempre estranho e distanciá-lo do convívio humano.
A Revelação divina suscita uma revelação humana. Faz com que nos movamos num ambiente que supera aquele traçado por Hobbes. Podemos ser mais que lobos uns para os outros. Sentadas ao redor do ser humano, as ciências devem traçar planos, estabelecer parcerias, sobretudo entre política e educação. Neste período de vacância do Ministério da Educação, acompanhemos a presidenta e torçamos para que encontre alguém que pense a educação além das mercadologias atuais. Deste modo, a sociedade brasileira verá que ordem e progresso genuínos, derivam de uma inseparável circularidade entre educação política e políticas educacionais.

domingo, 15 de março de 2015

Os Sofistas e os Filósofos Clássicos



Os sofistas não compartilham os interesses filosóficos dos clássicos e colocam sobre os ombros da filosofia objetivos bem mais imediatos. A busca da verdade, cara aos três grandes filósofos, cede lugar ao sucesso das posições expostas na àgora, lugar das discussões intelectuais e políticas na Grécia Antiga. Os sofistas abrem mão de pretensões metafisicas e se aliam aquilo que é meramente descritivo, mas que serve para ludibriar, para mascarar de verdade aquilo que é enganoso e tende aos fins particulares em detrimento das mediações necessárias para os fins coletivos.
Os sofistas rompem com a busca por algo de absoluto como até então era realizado pela filosofia. Não há nada de absoluto que possamos tocar e experimentar. Há uma ênfase do fato, do temporal sobre o atemporal, do fluxo sobre o fixo. Os estudiosos da filosofia clássica atribuem aos sofistas o início de um processo que resultou no velho e conhecido relativismo.
Coube a Protágoras, formular o princípio do homo mensura, no qual o ser humano é apresentado como medida de todas as coisas. Para os sofistas, a tarefa do ser humano consiste em medir as realidades circunstantes e não ser medido por elas. Na antropologia sofista, o ser humano é criador de si mesmo, com seus parâmetros próprios. Deste modo, percebe-se que a historicidade humana sempre foi líquida, muito antes da formulação de Bauman. Nos sofistas, ressoa o princípio de Heráclito segundo o qual tudo flui isto é, tudo muda, se desfaz e se refaz: costumes morais, princípios éticos, deuses do momento, formas de governo e concepções de justiça. Nestas contínuas sucessões permanece o ser humano preso as suas necessidades e disposto a tudo para respondê-las.
A perspectiva de Górgias engloba aquilo que se chama de gnosiologia ou teoria do conhecimento. Enquanto Sócrates levanta a bandeira do inatismo gnosiológico, considerando que somos dotados de conhecimento e apresentando-se qual parteiro pronto para auxiliar no doloroso e necessário parto de ideias, Górgias defende a impossibilidade do conhecimento, pois afinal não há nada para conhecer e mesmo que houvesse não poderíamos conhecê-lo, se pudéssemos conhecer não poderíamos transmitir, se pudéssemos transmitir não seria compreendido.
Quanto emerge da trajetória dos sofistas, acentua um cansaço da filosofia que numa linguagem kantiana, se aproxima do fenômeno e se distancia do noumeno. Relativização do absoluto, absolutização do relativo marcam este percurso que não é privo de bons contributos. Mesmo distantes dos ideais que motivaram a impostação filosófica de Sócrates, Platão e Aristóteles, deve-se agradecer aos sofistas: a distribuição de conhecimentos fora dos domínios da Helade, o aprimoramento da arte retórica e a impostação mais próxima aos atuais centros de educação.

sábado, 7 de março de 2015

Filosofia, Cultura e Mito.



A filosofia traz consigo uma leitura crítica que atravessa os elementos culturais que formam um determinado momento histórico. A filosofia dialoga com a cultura de um tempo e os laços que as unem são tão estreitos que se trata de companheiras inseparáveis. Até mesmo quando a cultura de um tempo é hostil aos questionamentos da filosofia. Esta permanece sempre inquieta. E já que inquietar é o esporte preferido da filosofia, o diálogo instaurado com a cultura visa inquietá-la, para encontrar aquilo que nela é benéfico e aquilo que é nocivo ao ser humano. É papel social da filosofia, indagar aquilo que está sendo cultivado num dado momento histórico.
É por conta desta leitura que a filosofia nasce política. A filosofia surge assumindo um compromisso com a cidade, não para torná-la o paraíso terrestre teorizado por Marx. Existem problemáticas que não dependem apenas da reflexão para que encontrem solução. A filosofia se debruça sobre a cidade para auxiliá-la, para torná-la justa, de modo que nela realizemos a meta comum aos seres humanos de quaisquer períodos históricos, bem além do gênero e das classes sociais ocupadas. Esta meta humana consiste na felicidade, a famosa eudaimonia dos filósofos gregos.
A cidade sobre a qual a filosofia concentrou os seus questionamentos era repleta de deuses e logo desconfiou de todos eles. A filosofia constatou que os gregos possuíam deuses para cada coisa e que todos eles estavam prontos para atender e realizar os desejos humanos e também para puni-los se necessário, sobretudo quando a hegemonia da classe dominante fosse ameaçada pelos ditos rebeldes, buscando justiça. Vigiar e punir sempre foram prerrogativas do controle divino sobre os seres humanos. Os deuses sempre correram pelos corredores da política. Não só a filosofia, mas também toda religião é política.
Os deuses habitaram os mitos gregos que são relidos num espaço chamado de mitologia isto é, estudo dos mitos. Normalmente o termo mito possui uma conotação negativa e deve mesmo possuí-la quando procura manter um status quo, quando reforça a supremacia de uns sobre outros. Com estes objetivos o mito deixa-se contaminar pelas degenerações ideológicas. Quando visitado pela filosofia, é transformado nas suas intenções: o mito deixa de aprisionar e passa a libertar.
Dentre os filósofos clássicos que mais reorientaram os objetivos do mito, destaca-se o trabalho de Platão. São seus os conhecidos mitos de Er, o Anel de Giges e a Caverna. Todos temperados com os elementos da cultura do seu tempo dialogaram com as reais necessidades de um período histórico. O mito platônico é dotado de um caráter atemporal. Do mito se extrai uma provocação válida para cada tempo. Quando o lemos, parece que foi escrito para o hoje e por vezes, parece que foi escrito para nós. O mito não é verdadeiro, mas é belo. O sistema é verdadeiro, porém é árido. Ambos são igualmente necessários para uma prazerosa e correta apresentação da filosofia, capaz de questionar o momento histórico sobre o qual se desenvolve, evidenciando os avanços e as lacunas que tocam este fantástico ser que chamamos humano.