A religião pressupõe e suscita uma reflexão teológica, um
discurso sobre Deus que toca a história da humanidade. Mesmo diante das teorias
mais ferozes acerca da inexistência de Deus, a história mostra que se trata de
uma realidade muito mais próxima do que se imagina. A mitologia grega é repleta
de deuses solícitos aos apelos humanos mediante a oferta de sacrifícios e a
realização de tantas outras tarefas. Assírios, egípcios e povos indígenas já
tinham elaborado discursos sobre Deus e, portanto possuíam aspectos teológicos.
As páginas da história humana são repletas de construções e
destruições de altares que por vezes foram ocupados pelos próprios seres
humanos, contingentes e sedentos de eternidade. O discurso teológico, porém não
está atrelado necessariamente ao aspecto religioso. As etapas da filosofia
platônica exalam sempre este apelo ao transcendente, ao divino, ao ideal
enquanto agente transformador do imanente, do humano, do real.
O mito de Er apresentado por Platão acentua bastante este
aspecto de uma instância superior. O soldado caído em batalha presencia
acontecimentos realizados num estado post
mortem. Algumas almas premiadas pelas boas ações recebiam dotes preciosos.
Outras, castigadas pelas contradições sofriam duras penas e castigos
indizíveis. Er permanece extasiado diante do espetáculo descrito por Platão e
recebe a incumbência de retornar sobre a terra para ser uma espécie de sinal
que recorda a existência de uma realidade que está além da fugacidade humana.
Mesmo quando a percepção não é assim tão clara e distinta como
desejaria Descartes, filosofia, religião e teologia se encontram nesta
inevitável areia movediça que os séculos chamam comportamento humano. Diferente
das demais existências, o ser humano não pode viver plenamente quando se
assemelha a um trem desgovernado, fora dos trilhos, em altíssima velocidade,
destinado ao massacre de si e de seus contemporâneos.
O ser humano necessita de parâmetros, de luzes que o auxiliem no
decorrer do percurso vital para que atinja seus verdadeiros fins. Acentuadas do
ponto de vista antropológico, filosofia, religião e teologia, entrelaçadas por
este preciosíssimo fio da teleologia, apresentam um caráter catártico, segundo
o qual a historicidade humana equivale a um longo caminho de purificação. A
filosofia clássica, particularmente no seu momento platônico, apresentou-se
qual itinerário de libertação dos sentidos, fontes de erros e equívocos que
retardam a contemplação da ideia alcançada através do esforço racional.
A filosofia de Platão pretendeu ser um exercício preparatório
para a morte, momento no qual a alma enfim liberta deste cárcere que é o corpo
verá estas realidades, não mais sob o véu da temporalidade, mas sim como
verdadeiramente são. A morte na filosofia de Platão é lugar no qual finito e
infinito se encontram e marcam profundamente a trajetória humana. Não é a toa
que condenado injustamente, Sócrates dirige aos seus acusadores as seguintes
palavras: “Mas, já é hora de irmos: eu para a morte, e vós para viverdes. Mas, quem
vai para melhor sorte, isso é segredo, exceto para Deus”.