sábado, 30 de julho de 2016

Deus e o coração humano a partir de Agostinho

As Confissões é uma das obras que marca o itinerário espiritual de Agostinho: o mais humano de todos os santos. Talvez seja este o motivo da grande identificação que há com Agostinho. O fato de conhecer seus pecados faz com que seja sentido como um de nós. Como alguém que bem nos conhece e que passou por tudo aquilo que nós já passamos. A vida deste jovem africano repleta de altos e baixos, desperta atenção por muitas causas e ainda por não ter vivenciado um lar somente cristão. As orientações do pai pagão foram as mais incisivas, preenchendo o coração cristão de sua mãe com inúmeras preocupações.
Nesta obra Agostinho mostra que toda trajetória humana é caracterizada por uma busca de Deus. Mesmo quando não se dá conta o coração humano está procurando Deus através de variados itinerários sejam estes, políticos, acadêmicos, artísticos, musicais e religiosos. Neste trajeto o ser humano se depara com propostas que distanciam e aproximam de Deus. Há uma inquietação que é sinônimo do coração humano e que faz de Agostinho o primeiro dos existencialistas em sede de filosofia cristã, precedendo nomes quais Marcel, Maritain e outros. Movida por questões não respondidas a inquietação se abriga nas mãos de Deus.
Se o percurso humano é relido por Agostinho a partir desta busca até mesmo tortuosa de Deus é preciso situar o lugar privilegiado no qual este Deus procurado se deixa encontrar. Tendo revisitado toda a obra das suas mãos, Deus escolheu o coração humano para armar a tenda da sua presença suportando as intempéries derivadas do exercício do livre arbítrio. Procurá-lo sem olhar para si próprio equivale a subtrair esforços antropológicos capazes de desvelar que a maior vocação humana implica transformar-se no belo abrigo de Deus.
As páginas históricas mostram que frequentemente Deus foi expulso do coração humano por violar com ingerências sua imprevisível capacidade de decisão. Sem aceitar critérios oriundos dos lábios de Deus, o coração humano se deixa atrair por ídolos impostos pelos modismos culturais responsáveis pela geração dos atuais processos de despersonalização. Infligindo sobre Deus a dura pena de caminhar errante como um banido do convívio social, constata-se que o próprio coração humano pereceu.
Quiçá a filosofia cristã com seus questionamentos mostre quais são as verdadeiras causas da demissão deste Deus que tem sido visto como um ultrapassado e incapaz de satisfazer os caprichos humanos. A religião é autêntica cada vez que sinaliza através da sua liturgia que o coração humano sente falta não de um Deus defendido mas fraternalmente vivido, não de um Deus representado mas partilhado, não de um Deus preocupado em converter mas sobretudo em acolher, não de um Deus disposto a condenar mas pronto para libertar.

sábado, 23 de julho de 2016

A lei, o negro e a sociedade brasileira

A lei com as suas controvérsias é uma das coisas mais necessárias para a convivência humana. Dentre os papéis exercidos pela lei está aquele que consiste em polir posturas arbitrárias responsáveis pelas pseudopolíticas que corroem todos os órgãos sociais. A lei tem a função de cuidar para que nada violente o que existe de mais nobre: a vida humana. A lei pretende responder a uma pergunta que marca o itinerário social: o que devo fazer? A lei é tão indispensável que se pode pensá-la como o ar que dinamiza toda a ação política. É por este motivo que todo cuidado é pouco com aqueles que elaboram a lei. Uma vez contaminada por alianças espúrias, a lei provoca graves e até irreversíveis fraturas sociais.
O percurso sociopolítico brasileiro mostra que lei e justiça nem sempre se aproximam. Por vezes a lei não gritou em defesa da pessoa humana e assistiu a sua cruenta depredação. Quando se olha para este Brasil domesticado por seus colonizadores vê-se que por pouco - apenas doze anos - não se entrou no século XX cultivando ainda a ferida da escravidão. Foi necessário esperar um descuido, como se estivesse fazendo algo inaceitável, para que o Brasil guiado por uma mulher, contasse com a breve, incompleta e necessária Lei Áurea.
A lei não é uma varinha mágica que sancionada retira a liberdade de uma cartola histórica. A lei providencia elementos que recuperem tudo aquilo que foi negado a qualquer lesado. Quando esqueceu de oferecê-los, a lei não gerou igualdade e blindou desigualdades mostrando que diante dela não somos assim tão iguais como consta nos seus belos artigos. A Lei Áurea não forneceu instrumentos que sanassem as graves feridas da escravidão e disse apenas que o sangue do negro não mais contaminaria o nobre latifúndio brasileiro. Não houve um empenho concreto da lei para uma válida extinção da escravidão. O que se fez foi somente favorecer a sua continuidade através de outras inaceitáveis modalidades que deram ao negro uma dura clandestinidade como recompensa por ter enriquecido esta sociedade.
O passado escravocrata brasileiro surgiu do nada, não tem culpados e nem deve respostas? É possível aceitar que o negro deixe apenas de ser escravizado e seja marginalizado? O Estado pode cruzar seus braços após ter colaborado com o teatro do negro escravizado? A lei hodierna deve repetir os erros do passado e deixar de promover uma real inserção social? Tudo o que este Brasil deve ao negro passa através dos canais educacionais outrora negados. A lei 12.711/12 chega com um enorme atraso e com a tarefa social de sanar as desigualdades abissais movidas pela vergonhosa falta de compromisso político com o negro oprimido que não aceita uma liberdade sancionada e quer construí-la por meio de políticas públicas efetivas.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Os movimentos sociais negros em busca de cidadania.

A característica central do movimento social reside numa ordenada mobilização em prol do combate aos mecanismos que visam o ocultamento da identidade negra na variedade das suas expressões religiosas e culturais, através de um itinerário de conscientização que repudia tentativas de invisibilidade. Tal itinerário foi enfatizado pela imprensa negra através de jornais que aqui circularam por muitas décadas. Partindo de cidades do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e tantas outras, este instrumento de comunicação divulgou os problemas enfrentados pela população negra no Brasil que ao tornar-se República (1889), privilegiou a mão de obra europeia capaz de impor ulteriormente a absorção da própria identidade cultural e religiosa. A imprensa negra exerceu o papel de denúncia contra os acessos negados ao negro que em muitas cidades da República que engatinhava sequer era imaginável sua presença nos partidos, igrejas, teatros e escolas.
É possível identificar uma passagem no Movimento Social Negro que vai de uma conscientização social rumo ao engajamento no cenário político, precisamente na organização intitulada, Frente Negra Brasileira que ampliava a voz de milhares de negros excluídos inclusive dos partidos políticos brasileiros. Uma das reivindicações atendidas durante o governo Vargas consistia na entrada de negros na guarda civil da cidade de São Paulo. Mesmo inspirando-se em propostas políticas totalitárias, como aquelas de Hitler e Mussolini, a Frente Negra Brasileira contou com mais de vinte mil associados reunidos em volta de ideais conservadores como os conhecidos Deus, a pátria e a família, utilizados nas manifestações que originaram uma das mais cruentas ditaduras que estão trancadas nos porões do esquecimento.
Uma apresentação dos movimentos que militaram a favor dos negros não dispensa a presença da chamada União dos Homens de Cor, na segunda metade dos anos 40. Mesmo utilizando uma expressão hoje chamada de politicamente correta, as metas perseguidas por esta já visavam conceder ao negro, instrumentos que foram negados quais poderio econômico, moradia digna, saúde e educação. Talvez aqui resida a abordagem que mais se aproxima de quanto construído no Brasil hodierno. Há uma superação de um plano assistencialista e a sucessiva elaboração de estratégias que norteiem a construção da cidadania. Não de menor importância, o Teatro Experimental do Negro, fundado na cidade do Rio de Janeiro (1944) foi responsável por importantes elaborações que geraram espaços de conscientização, quais: o jornal Quilombo, o Instituto Nacional do Negro, o Museu do Negro e o I Congresso do Negro Brasileiro.
Cabe ressaltar a presença de outro precioso instrumento de cidadania criado em 1978, chamado Movimento Negro Unificado. Trata-se de um ano bastante relevante na releitura da sociedade brasileira. É um momento propício para o fortalecimento das classes operárias e no forte clamor das reivindicações, aquelas bradadas pelos negros também encontraram uma parceria frutífera. De modo que a luta em prol das efetivas condições de emancipação do negro passa também pela crítica a um modelo capitalista desconhecedor de quaisquer valores que não se prostrem diante do lucro desmedido e desumanizador. As pautas aqui exigidas são aquelas que abraçam as parcerias na defesa do trabalhador negro, despreparado e explorado, até a introdução do estudo da história da cultura africana nas escolas do território brasileiro. Não se ama aquilo que não se conhece. E o cancelamento do teor cultural africano no Brasil só alimenta a indiferença, a ignorância disfarçada de intelectualidade, a transmissão da discriminação e do ódio racial.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

O holocausto dos negros no Brasil

Tudo parece exagerado quando se encara a história de um povo dizimado pelo holocausto. Os ouvidos da civilização não ouvem o barulho ensurdecedor de tanta agressão. Desde a segunda metade do séc. XVI os negros foram enjaulados no Brasil. Surge assim a questão: Houve um holocausto dos negros no Brasil? Em que consiste um holocausto racial? Na maioria das vezes se concentra o holocausto na tragédia que ceifou a vida de milhares de hebreus. É preciso dizer que em todo latifúndio brasileiro funcionava um horrendo campo de concentração com requintes de restrições e crueldades que em nada deixam a desejar diante das atrocidades que o regime de Hitler cometeu contra uma imensidão de hebreus. A isto se chamou de senzala, lugar no qual há o nada e onde se é desapropriado da alma.
O holocausto implica o sacrifício que é expressão de gratidão por um benefício recebido. É um agradecimento pelo êxito numa colheita, pelo animal caçado, pela vida preservada diante de uma peste avassaladora. Desde uma abordagem mítico-religiosa, o holocausto exige sempre o derramamento de sangue que livra o chão da história dos parasitas sociais. Neste caso, o holocausto recebe um acento sistemático perseguindo um povo sobre o qual é imposta a difícil tarefa da expiação que consiste numa necessária purificação. Somente livres daqueles que são as pragas da sociedade haverá a tão sonhada ordem e progresso.
O negro açoitado é apresentado como um vencido, como um modelo que deve ser evitado. O negro mutilado e detido, é visto como um bicho ferido no uso sagrado do livre arbítrio. O negro agredido sufoca qualquer tentativa daquilo que por longos anos foi erroneamente chamado de fuga, pois só se tratava do anseio natural de uma liberdade até então negada. O negro castigado acalmava os ânimos e minava quaisquer planejamentos de liberdade. Domesticados, os negros sentiam o efeito da pérfida água fria lançada sobre as frustradas expectativas de cidadania. Não só a atividade jurídica não se comprometeu com o negro escravizado, mas respaldou a agressividade dos senhores, favorecendo o poder dominante.
Durante os anos tortuosos da escravidão houve no Brasil uma verdadeira engenharia do mal capaz de fabricar os mais temíveis objetos comercializados em plena luz do sol numa economia desumana que entretinha uma plateia sempre pronta a aplaudir a engenhosidade destes instrumentos avaliando sua eficácia em conter o negro, verdadeiro bicho brasileiro. Inseridos numa pedagogia da opressão, tais itens eram apresentados ao negro desde cedo para que soubesse o que lhe aguardava, caso deixasse o cativeiro em busca de liberdade.
Num dos holocaustos acontecidos neste Brasil que não lê sua própria identidade histórica viu-se com naturalidade mulheres violentadas, homens castrados e crianças abandonadas pelo fato de pertencerem a um povo que sofreu indizíveis violências físicas e psicológicas. A quem se ofereceu tamanho sacrifício? E como repercute no imenso território brasileiro? O negro foi sacrificado em nome do crescimento econômico e da manutenção do poder. Os suplícios impostos sobre estes homens e mulheres causaram uma sociedade marcada pelas feridas da desigualdade que somente serão sanadas quando utilizados mecanismos de emancipação destinados aos filhos e filhas de uma geração segregada pela escravidão. Sufocado pelas máscaras atrozes da injustiça a lei 12.711 ecoa um forte grito de cidadania.