sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Metafísica e Política: Ser e Cuidar.

Refletindo acerca das inevitáveis correlações entre ethos e polis, nos aproximamos de considerações que evidenciam quais os comportamentos dominantes que mais incidem sobre a cidade, ao ponto de determinar os contornos que originam a sua identidade.
De outro lado, percebemos que há uma comunicabilidade que perpassa todo o processo de geração de comportamentos. É como se perguntássemos: Que cidade temos e que cidade queremos? E contemporaneamente ouvíssemos perguntas da cidade: Os meus estão distantes dos progressos aqui alcançados? Estão cansados de suportar o meu peso sobre os ombros? Sabem de fato que são meus e por isso mesmo são cidadãos?
Numa palavra, não é somente o antropos que nasce da polis, como refletíamos guiados pelos estímulos da filosofia de Aristóteles, mas a polis decorre do antropos. A filosofia não mostra exclusivamente a direção de uma antropologia política, mas evidencia a necessidade de uma política antropológica.
De quanto dito, abre-se uma perspectiva que entrelaça metafísica e política. Inicialmente parece forçosa tal relação, até porque herdamos de Aristóteles a abordagem que separou de forma abissal estas constantes do fenômeno humano. O fato de ter acentuado um aspecto especulativo do intelecto e outro prático, dedicado à ética-política e destinado a dar espaço a uma reflexão projetada para além da physis, lançou as bases para uma dicotomia que persiste até estes dias, esboçou uma política atrelada ao pragmático nas suas versões mais imediatistas e redutivas que insistem em tornar parcial a integralidade do fenômeno humano.
E precisamos dizer que o discurso metafísico foi atingido nesta sua inseparável plataforma, a physis. É como se uma vez reféns das releituras que os modernos fizeram dos clássicos e do iluminismo cristão, tivéssemos esquecido que as questões de ordem metafísica possuem um ponto de partida concreto e objetivo que repercorre toda extensão da empiria.
Assim atingidas, tanto a reflexão política quanto aquela metafísica, vê-se a dificuldade de uma abordagem que viabilize a construção de uma ontologia, ou seja, de uma compreensão do ser.
Quando se lançou nesta busca, Tomás de Aquino (séc. XIII) compreendeu a pessoa humana qual ato de ser (actus essendi), mostrando a relação entre o “ser que é” e o “ser que está sendo”. Durante a modernidade filosófica o ser foi lançado num esquecimento sombrio que não poucas vezes impossibilitou o seu reconhecimento. Somente com Heidegger (séc. XX) vemos o retorno de um interesse pela compreensão do ser a partir deste dado que caracteriza a contingência humana que é a sua fragilidade. Entre o “ser que é” e o “ser que está sendo” há uma relação manifestada enquanto cuidado, aquele da polis com as suas estruturas em relação ao antropos, e o deste para com a polis.
É importante que não vejamos mais os nefastos resultados de quaisquer unilateralismos da razão. Curvada diante destes, a razão produz compreensões sempre mais estreitas e parciais. E quando isto acontece, surgem absurdas compreensões de um partido político, de uma corrente filosófica, de uma linha econômica, de um povo, ou se quisermos de uma raça. É como se disséssemos: o ser que está sendo, não permite que o outro seja.
Quando compreendemos o ser a partir da alteridade, vemos que uma sã metafísica é necessariamente política enquanto comprometida com a polis, vemos que uma sã política é necessariamente metafísica enquanto comprometida com o antropos.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

A Magna Carta de 1215: a lei ao serviço da liberdade.

Dentre as características da sociedade contemporânea, certamente a liberdade está entre aquelas que se apresenta por si mesma. São inúmeros os esforços que a explicitam como também aqueles que visam protegê-la quando se vislumbram circunstâncias que ameaçam a integridade e a multiplicidade das suas expressões. A centralidade da liberdade na sociedade hodierna é tão indiscutível que graças a tantos esforços realizados, nos damos o luxo de discussões acerca do seu correto uso. Olhando para a história, constatamos que nem sempre foi assim. Até pouco tempo a liberdade foi mesmo um artigo raro usufruído por poucos privilegiados.
É nas densas páginas da erroneamente chamada idade das trevas, que se encontra pela primeira vez um documento jurídico centrado sobre a defesa da liberdade. Não há algo errado nesta posição? Há relação entre Medievo e Liberdade? Quando corretamente apresentado, livre de correntes ideológicas, constata-se que Primeiro Iluminismo (ou Iluminismo cristão), é o termo mais apropriado para este período da humanidade. O próprio Tomás de Aquino (1225), grande expoente da literatura filosófico-cristã, nasce numa Europa consciente do papel que a liberdade desempenha na sociedade. Esta é a indiscutível peculiaridade deste valioso tesouro jurídico apropriadamente chamado, Magna Carta (1215): apresentar solenemente, de modo claro e explícito que liberdade é o nome próprio da sociedade humana.
Olhando para as páginas políticas da história, percebe-se que a relação entre governo e governados foi marcada por constantes abusos. O primeiro, dotado de uma liberdade ilimitada, sempre impôs fardos absurdos ao exercício de liberdade dos seus governados. Bens preciosos, como: a propriedade, o trabalho, a locomoção, a expressão de opiniões e até mesmo a vida humana, ocuparam um lugar secundário, foram aniquilados quando não serviram aos interesses dos governantes que macularam o fenômeno humano com as agressões das tiranias e dos despotismos, dos totalitarismos e das ditaduras. São inúmeras as situações nas quais o governante se coloca acima da lei, instrumentalizando-a, direcionando-a a fins próprios em detrimento do benefício da coletividade. Na história humana, a lei exerceu o papel de dominação social que subjugava os governados e blindava o governante, isentando-o de responsabilidades e legitimando cruentas barbáries.
De uma forma ou de outra, todos um dia perguntamos acerca da especificidade de direitos que são ulteriormente adjetivados com o termo “humanos”. As respostas recolhidas na diversidade de autores e doutrinas irão nesta direção: trata-se de direitos inalienáveis, inerentes a pessoa humana enquanto tal, são indiscutíveis, não há nada que seja digno ao ponto de nutrir o propósito de trocá-los. Como todo universo humano, estes seguiram evoluções que originaram as gerações dos direitos fundamentais. A primeira geração destes direitos dedica-se inteiramente ao tema da defesa da liberdade e afunda as suas raízes na célebre declaração da Magna Carta.

O texto jurídico escrito no séc. XIII pelo rei João acentua a necessidade de limitação dos poderes exercidos pelo governante, apresenta a lei não como um escudo que protege arbitrariedades, mas sim como um instrumento ao serviço da liberdade. Na primeira cláusula da Magna Carta reside quanto será especificado no decorrer deste texto que é um verdadeiro hino a liberdade. Suas cláusulas ressoam pelas épocas sucessivas, intrigam as reflexões jurídicas hodiernas e exigem respostas dos operadores deste interminável processo de adaptação social que é o direito. Lê-se com espanto, admiração e expectativa: “1. Garantimos, também, a todos os homens [...] de nosso reino, de nossa parte e de parte de nossos herdeiros para sempre, todas as liberdades abaixo indicadas, para que eles e seus herdeiros as possuam”.